Transcrevo em tradução minha:
“Em 1518 Lutero descobriu que ele escrevia bem: de forma acessível, envolvente, misturando questões que levavam as pessoas ao êxtase com questões que pareciam mais golpes baixos desferidos numa luta de rua… Lutero tinha um jeito especial de combinar imagens e analogias que tornavam questões complexas fáceis de entender com paradoxos que faziam seus argumentos parecer quase irrefutáveis. E ele podia fazer isso tanto em Latim, a linguagem dos acadêmicos e dos intelectuais, como em Alemão, a linguagem do povo da rua, pegando as pessoas pelo colarinho e arrastando-as para o debate… E fazia isso de forma deliciosa de ler…
A nova tecnologia inventada por Gutenberg encontrou em Lutero o seu primeiro grande mestre. A tecnologia tinha cerca de sessenta anos quando ele começou a escrever para o povo não especializado. A indústria da imprensa parecia já madura. Produzia calhamaços impressionantes na área jurídica, médica ou mesmo teológica para um mercado que parecia estável, conhecido e previsível. Lutero tropeçou, por assim dizer, numa nova forma literária e midiática, o panfleto voltado para o mercado de massa — curto, barato, direto ao ponto, passível de impressão e distribuição rápida e em grandes quantidades. A produção de um panfleto custava mais ou menos a mesma coisa que uma galinha no Século 16 — e era capaz de oferecer nutrição mais duradoura e saborosa. Esses panfletos e livrinhos de Lutero alcançaram uma audiência de massa de uma forma para a qual não havia nenhum precedente. Editoras e gráficas que entraram na onda ganharam uma fortuna. Os livretos de Lutero mudaram as regras não só da edição de livros, mas do debate teológico-religioso, que deixou de ser um jogo em que se envolviam apenas elites educadas em ambientes universitários intelectualizados, fazendo o melhor uso possível das obscuridades do Latim. Lutero implodiu os portões e as paredes desses ambientes. Agora, qualquer um que pudesse ler a língua alemã podia se beneficiar do debate e qualquer um que pudesse escrever nessa língua podia participar ativamente. O Protestantismo começa a quebrar os muros e as paredes de ambientes até então privilegiados.
A realização literária prodigiosa de Lutero não tem paralelo em nenhum outro momento da história humana. Se essa afirmação soa extravagante, vejamos os números. Durante sua carreira pública de trinta anos (1517-1546) Lutero produziu 544 diferentes livros, panfletos ou artigos, um pouco mais de um a cada três semanas. Em seu auge, em 1523, ele produziu cinquenta e cinco (mais de um por semana!). Naquele ano, 390 edições diferentes edições de seus livros, novos e velhos, foram publicadas. Lutero sozinho foi responsável por mais de um quinto da produção total de panfletos publicados por editoras e gráficas alemãs na década de 1520. Um pesquisador calculou os totais de panfletos publicados por seus apoiadores e por seus rivais, e concluiu que os dezessete principais autores de panfletos favoráveis a Lutero produziram, juntos, 807 edições de panfletos, nos anos 1518-1525, enquanto Lutero sozinho produziu 1.465, quase o dobro de todos eles. Nenhum líder revolucionário da história moderna, sem a ajuda da censura e do apoio do Estado, conseguiu chegar perto de uma realização fantástica como essa, da forma que Lutero conseguiu.
Os opositores de Lutero ficavam sem fôlego, atônitos. “Todo dia parece que chove livro de Lutero”, escreveu um eclesiástico católico, horrorizado, no ano de 1521. Durante esses mesmos sete anos (1518-1525), foram publicadas apenas 300 edições de obras contrárias a Lutero na Alemanha — e “nada vende!”. As editoras dessas obras lamentavam o fato de que o público não queria esses livros “nem de graça!”. Pudera! Mais da metade deles era em Latim, e nem tinham a pretensão de alcançar uma audiência de massa. Enquanto isso, apenas um quinto das publicações de Lutero era em Latim. Os defensores da ortodoxia estavam totalmente despreparados para esse dilúvio de publicações que caiu em cima deles. Quem pode culpa-los? Ninguém jamais havia visto algo assim antes… De certo modo, ninguém nunca veio a ver de novo!”
[Tradução de Eduardo Chaves de passagem do livro de Alec Ryrie, Protestants: The Faith that Made the Modern World (Viking, New York, 2017), pp. 22-23]
Em Salto, 29 de Maio de 2017