Escrevi, há pouco tempo, e já revisei várias vezes, inclusive no título, um artigo acerca da atitude de Lutero acerca da Bíblia, que tem o título, atualmente, de “Lutero e a Bíblia: Sola Scriptura, Mas Não Tota Scriptura”. O título, originalmente, não era este; era: “Lutero e a Bíblia: Sola Scriptura, Mas Não Toda…” Resolvi mudar o título quando encontrei na Internet um artigo de R. C. Sproul, com o título de “Tota Scriptura” [1]. Esse artigo me fez não só mudar o título do meu como prometer que iria escrever um outro artigo, que agora faço, analisando a peça de Sproul.
Sproul analisa em seu artigo duas teses que, segundo ele, são, do ponto de vista do Sola Scriptura da Reforma Protestante, seriam heréticas.
De um lado, há a tese Católico-Romana de que a Escritura Sagrada não é a única fonte de autoridade, posto que, ao lado dela, também há a Tradição da Igreja. Haveria, portanto, nesta hipótese, não só uma, mas duas fontes de autoridade. (Essa questão foi em parte discutida em meu artigo anterior, em que menciono, além dessas duas, também outras duas: a Razão Humana e a Experiência Humana).
De outro lado, há uma tese que, de certo modo, não vai além da tese da Reforma Protestante, mas fica aquém, embora a reconheça: a tese de que a Escritura Sagrada é a única fonte de autoridade, mas não ela toda… Haveria, nesta hipótese, um núcleo central dentro da Escritura (um cânon dentro do cânon, por assim dizer), que seria a fonte de autoridade. O que ficar de fora ou ao lado desse cânon dentro do cânon pode até ser interessante, e quiçá até verdadeiro, mas não é visto como algo que tem autoridade para o cristão.
Sproul menciona alguns exemplos de autores que, ao longo da História da Igreja, teriam dado alguma acolhida a esta segunda tese.
O primeiro deles seria Marcião, um indivíduo acusado de heresia no segundo século (as datas dele são ca. 85-160), sobre o qual Sproul afirma:
“A primeira lista de livros canônicos do Novo Testamento que nós temos foi produzida por um herege chamado Marcião. O Novo Testamento de Marcião era uma versão expurgada dos documentos bíblicos originais. Marcião se convenceu de que o Deus do Velho Testamento era, na melhor das hipóteses, um demiurgo (um deus que é o originador do mal) que em muitos aspectos tinha suas falhas, tanto na sua natureza, quanto no seu caráter. Assim, qualquer referência a esse deus, em relação a Jesus, contida nos livros do Novo Testamento, deveria ser removida. Assim recebemos de Marcião um perfil de Jesus e do seu ensino que fica divorciado do Velho Testamento” [2].
O segundo exemplo de Sproul já fica bem mais próximo de nós, no século 20. Trata-se do famoso teólogo luterano Rudolf Bultmann. Eis o que Sproul diz acerca da posição de Bultmann:
“Talvez o mais famoso representante dessa tese no século 20 foi o teólogo alemão Rudolf Bultmann, que fez uma significativa distinção entre o que ele chamava de ‘kerygma’ e o que considerava mito. Ele argumentou que a Escritura continha verdades, tanto históricas como teológicas, importantes para a salvação, mas que essas verdades estavam envolvidas e ocultadas por camadas de mito. Para que a Bíblia pudesse falar ao homem moderno, seria preciso demitologiza-la. As camadas de mito tinham de ser removidas para que o núcleo essencial enterrado por detrás delas pudesse aparecer e chegar à superfície” [3].
Como alguém que traduziu para o Português, enquanto ainda seminarista, em 1965, e numa tradução de certo modo caseira, o ensaio Neues Testament und Mythologie, que Bultmann publicou em 1941, e que causou a revolução da Demitologização, teria alguns reparos à descrição que Sproul faz do projeto bultmanniano [4]. Um deles: Bultmann falou apenas do Novo Testamento, não da Bíblia como um todo. Outro: Bultmann não estava interessado em verdades históricas, apenas em verdades teológicas e filosóficas de natureza existencial. Mas deixemos isso para lá. No essencial, não resta dúvida de que Bultmann encontrou um “cânon dentro do cânon” na transição da existência inautêntica, “segundo a carne”, para a existência autêntica, “segundo o espírito” – conforme Romanos. O resto não importava muito para ele [5].
Sproul fornece ainda um terceiro exemplo. Eis o que ele diz:
“Além do reducionismo de Bultmann, temos visto tentativas mais recentes, entre crentes evangélicos, e mesmo dentro da comunidade Reformada, de fazer um tipo de redução diferente da Escritura. Refiro-me às teorias da ‘inspiração da limitada’ ou da ‘inerrância limitada’. O que essas teorias pressupõem é que a inspiração da Bíblia não é holística ou total, sendo limitada apenas a questões de fé e doutrina. Num cenário desse tipo, os defensores dessas teorias sugerem que é possível distinguir entre questões doutrinais, em que os textos bíblicos têm origem divina, e aquilo que a Bíblia afirma em áreas como ciência e história, bem como, em alguns casos, ética. Assim sendo, há porções da Bíblia que não são inspiradas por Deus. Neste caso, temos mais uma vez o aparecimento de um cânon dentro do cânon” [6].
Causa-me enorme estranheza o fato de Sproul mencionar Bultmann, que foi o principal teólogo luterano (se não protestante) do século 20, e de mencionar Lutero, mas apenas no contexto de sua briga contra a “segunda fonte de autoridade” da Igreja Católica, a Tradição da Igreja, deixando totalmente de lado o que Lutero diz acerca do cânon e do conteúdo bíblico em passagens que eu mencionei no meu artigo anterior.
A posição de Bultmann, longe de ser estranha no contexto do Protestantismo, é totalmente fiel a Lutero. Na realidade, ele defende, em relação ao Novo Testamento, não só a existência de um cânon dentro do cânon, mas exatamente o mesmo cânon dentro do cânon que Lutero defendeu: a justificação pela graça, mediante a fé, que proporciona a passagem da existência inautêntica, segundo a carne, kata sarka, para a existência autêntica, segundo o espírito, kata pneuma.
Só o fato de Sproul ser um teólogo calvinista explica o que parece ser sua ignorância da posição de Lutero em relação à Bíblia – algo que vem sendo salientado, como deixei claro no artigo anterior, há mais de um século pelos historiadores do pensamento da Reforma Protestante [7].
Na verdade, embora reconhecendo os limites do curto artigo de Sproul, ele prestou um desserviço aos seus leitores ao não esclarecer o seguinte: a tradição do “cânon dentro do cânon”, que pode ter começado com Marcião, não salta de Marcião, no século segundo, para chegar a Bultmann, no século 20. Como já salientei, Lutero, no século 16, é um defensor extremamente importante dessa tese.
Mas há mais a ser esclarecido.
Bultmann defende a tese, não só porque é luterano, mas porque é um liberal luterano. Os teólogos liberais do século 19-início do século 20, foram todos expoentes da tese do cânon dentro do cânon. Tomemos Adolf von Harnack, por exemplo, em seu brilhante livrinho, escrito depois de ele ter composto sua magnífica História do Dogma (Lehrbuch der Dogmengeschichte, 1886-1890), em sete volumes: A Essência do Cristianismo (Das Wesen des Christentums, ou, em tradução para o Inglês, What is Christianity?, escrito na transição do século 19 para o século 20, em 1900). O fato de o título desse livro de 1900 falar na “essência” do Cristianismo já revela, como uma primeira pista, que von Harnack foca, privilegia e favorece, não o Cristianismo, como um todo, mas apenas o seu “coração”, o seu “núcleo essencial”. Uma segunda pista vem do fato de que von Harnack era luterano e, como historiador das ideias, que era, conhecia bem o pensamento de Lutero. No entanto, como disse, von Harnack, apesar de luterano, é, acima de tudo, um teólogo liberal. Em sua obra histórica, ele distinguiu entre o que ele chamava de Cristianismo, que era a religião simples, ética, não dogmática de Jesus, centrada no amor ao próximo, baseado na Lei Áurea, com uma ênfase social bastante próxima do chamado Evangelho Social, e o Catolicismo, calcado não em Jesus, mas em Paulo, e que, no devido tempo, com os primeiros Concílios Ecumênicos (Nicéia, de 325, Constantinopla, de 381, Éfeso, de 431, Calcedônia, de 451), se transformou numa religião dogmática, ortodoxa, calcificada, com ele qual ele não queria proximidade. O seu “cânon dentro do cânon”, portanto, não era o mesmo de Paulo, que era paulino e agostiniano (e, portanto, católico e não cristão, no entender de von Harnack). Ele era um cânon que focava, privilegiava e favorecia a religião simples, ética, não dogmática de Jesus — uma religião muito mais do coração do que da cabeça — e que dominava a Teologia Liberal do século 19. Finalmente, uma terceira pista de que von Harnack é adepto do “cânon dentro do cânon” está no fato de que uma de suas primeiras obras, na qual esteve envolvido desde o seu Doutorado, foi sobre Marcião!
A Teologia Liberal foi, nesse aspecto, herdeira do Pietismo Alemão dos séculos 17-18, um fenômeno tipicamente luterano, que, por sua vez, se reporta a raízes erasmianas, fundadas na prática dos chamados Irmãos da Vida Comum (Brethren of the Common Life), que seguiam uma piedade ou prática religiosa não-intelectualizada, e, por conseguinte, não doutrinária e não-dogmática, bem como não-ritualística, eminentemente ética e, ao mesmo tempo, prática mas voltada para dentro [8]. Nesse aspecto von Harnack, que era um defensor do Evangelho Social, difere deles: sua prática religiosa ou sua piedade é mais externa e social do que interna e individual. Mas nem von Harnack nem os Irmãos não queriam ter nada que ver com o que ficava de fora desse seu “cânon dentro do cânon” [8].
Enfim, Sproul conclui o seu artigo afirmando:
“Para fazer isso [definir um cânon dentro do cânon] teríamos de revisitar o ensino de Jesus, quando disse que o homem não vive apenas de pão, mas de toda palavra que procede da boca de Deus. Nós teríamos de mudar o que Jesus disse, para que ele passasse a dizer que nós não vivemos de pão apenas, mas de algumas palavras que procedem de Deus. Neste caso, a Bíblia é reduzida ao status de um livro em que o todo é menor do que a soma de suas partes. Temos encontrado, em seminários que se chamam de Reformados, professores que advogam esse tipo de cânon dentro do cânon. A igreja deve dizer um ‘não’ enfático a esses desvios do Cristianismo ortodoxo, e deve reafirmar sua fé, não só no sola Scriptura, mas também no tota Scriptura” [9].
Lastimavelmente, o argumento é fraco – e é fraco porque Sproul ignora a posição de Lutero. Sproul parte do pressuposto, em evidente petitio principii, que a totalidade da Bíblia é divina inspirada e, portanto, Palavra de Deus. O argumento de Lutero dispensa esse pressuposto. Para Lutero, a Palavra de Deus, que está na Bíblia, só se identifica com o coração, o núcleo essencial, da mensagem evangélica, isto é, com o cânon dentro do cânon, que, para ele, está na justificação pela graça, mediante a fé (mas, para von Harnack, está na mensagem ética de amor ao próximo do Jesus histórico). O que está fora ou de lado desse núcleo, não é, para os proponentes das diversas versões do “cânon dentro do cânon”, Palavra de Deus: é palavra de homens, mesmo, que, falíveis, podem errar, mesmo tendo sido justificados pela graça, mediante a fé.
Nota Post Scripta
Há um vídeo bastante claro e instrutivo de Augustus Nicodemus no Facebook, no qual ele discute a tese de que “Jesus é a chave hermenêutica para a interpretação das Escrituras”. Nicodemus, corretamente a meu ver, considera essa tese uma versão moderna do “cânon dentro do cânon”. Eu, pessoalmente, não sou contra o “cânon dentro do cânon”, e, por conseguinte, não aceito a defesa dele do “Tota Scriptura” (embora ele não use a expressão) alicerçado na “História da Redenção”. Mas concordo com ele que a pergunta a que ele responde tem, por trás, a tese do “cânon dentro do cânon”. Vale a pena ver o vídeo. Ele é muito claro. Não conheço o livro mencionado pelo outro personagem.
NOTAS
[1] Disponível em http://www.ligonier.org/learn/articles/tota-scriptura/. O artigo está em Inglês.
[2] Op.cit., terceiro parágrafo. Tradução minha do Inglês.
[3] Op.cit., sétimo parágrafo. Tradução minha do Inglês.
[4] Vide Rudolf Bultmann, O Novo Testamento e a Mitologia, tradução do Alemão, com apoio da tradução para o Inglês e para o Francês, Centro Acadêmico Oito de Setembro – CAOS, Campinas, 1965, mimeografado.
[5] Vide neste contexto meu trabalho “Bultmann e a Exegese de kata sarkis e kata pneuma em Romanos VIII:12-17”, trabalho de fim de curso de Teologia do Novo Testamento, São Leopoldo, 1967, mimeografado.
[6] Op.cit., oitavo parágrafo. Tradução minha do Inglês.
[7] R. C. Sproul se formou em Teologia no mesmo seminário em que me formei, só que seis anos antes (ele em 1964, eu em 1970). A instituição se chama hoje Pittsburgh Theological Seminary. Quando ele estudou lá se chamava ainda Pittsburgh-Xenia Theological Seminary. Vide https://en.wikipedia.org/wiki/R._C._Sproul. Esse artigo salienta que o mentor de Sproul, durante seus estudos, foi o Professor John Gerstner, que também foi meu professor de História da Reforma. Gerstner era o mais conservador dos professores do Seminário, chegando a ser considerado fundamentalista, mas era extremamente competente, e aprendi muito estudando com ele. Tenho dois livros e uma apostila dele: um livro sobre denominacionalismo e outro sobre milenarismo / dispensacionalismo.
[8] Compare-se, a este respeito, a Introdução do Editor Mathew Spinka ao livro Enchiridion, de Erasmo, no volume XIV, com o título Advocates of Reform: From Wyclif to Erasmus, da coleção, em 26 volumes, Library of Christian Classics (The Westminster Press, Philadelphia, 1953 (data desse volume), pp.281-282. A tradução do livro de Erasmo é de meu ex-professor no Pittsburgh Theological Seminary, em Pittsburgh, PA, EUA, Ford Lewis Battles, que também é responsável pela principal tradução do Latim para o Inglês das Institutas de Calvino.
[9] Op.cit., último parágrafo. Tradução minha do Inglês.
Em Salto, 16 de Junho de 2017; Revisado em 22 de Junho de 2017 (inclusão da “Nota Post Scripta”.
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