[Embora este blog seja dedicado basicamente à Reforma Luterana, transcrevo aqui, por ser relevante para tirar algumas dúvidas terminológicas, um artigo que publiquei em 14/08/2015, em meu outro blog Church History Space (https://historiadaigreja.space) em https://historiadaigreja.space/2015/08/14/a-tradicao-reformada-parte-01/, com o título de “A Tradição Reformada – Parte 01”]
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John H. Leith, no seu livro A Tradição Reformada: Uma Maneira de Ser a Comunidade Cristã (Editora Pendão Real, São Paulo, [1980], 1997), esclarece, no Prefácio, o seguinte:
“A Tradição Reformada não pode ser definida com precisão. Aqui [neste livro] ela é entendida, de modo geral, como o padrão do cristianismo protestante que tem suas raízes na reforma do século XVI, na Suíça e em Estrasburgo” [p.8].
O que Leith chama de um “padrão de cristianismo” envolve no mínimo três componentes: teologia, liturgia do culto e forma de governo da igreja [p.8].
No entender de Leith, dada a sua definição, a Tradição Reformada, na primeira metade do século XVI, é representada, do ponto de vista teológico, pela obra de João Calvino e Teodoro Beza, em Genebra, Ulrico Zuínglio, em Zurique, e Martinho Bucer, em Estrasburgo — e, em termos de importância relativa, por Calvino, mais do que por Beza e por Zuínglio, e por estes dois mais do que por Bucer.
Mas esta forma de conceituar a Tradição Reformada sugerida por Leith, e os nomes que ele inclui na tradição reformada do século XVI, na área teológica, bem com sua importância relativa, não devem ser vistos como “verdade revelada”.
Uma outra fonte interessante que nos ajuda a discutir o conceito de Tradição Reformada de forma muito proveitosa e um pouco diferente é Roger E. Olson, em especial em seu livro Contra o Calvinismo. Olson, que certamente se considera parte da Tradição Reformada, não se considera, stricto sensu, calvinista — visto ser um defensor ardoroso das ideias de Jacó Armínio — que, é bom que se ressalte, se considerava não só parte da Tradição Reformada como também calvinista. Embora Olson aceite muitas das doutrinas formuladas por Calvino e contidas nas Institutas da Religião Cristã, a “Bíblia” do Calvinismo, ele se recusa a aceitar outras, em especial na área da Soteriologia, que acabaram por se tornar importantes no contexto dos chamados Cinco Pontos do Calvinismo Ortodoxo, ou do Hiper-Calvinismo (pessoalmente não gosto desta última expressão), conhecidos pelo acrônimo TULIP, a saber:
- Total Depravity (Total depravação ou degeneração da natureza humana, isto é, o pecado de nossos primeiros pais, quando da queda, corrompeu de forma total a natureza humana, sendo transmitido, na forma de “pecado original”, para toda a sua descendência)
- Unconditional Election (Eleição incondicional, isto é, não dependente do conhecimento prévio do que as pessoas vão fazer em suas vidas)
- Limited Atonement (Expiação limitada, isto é, a expiação de pecados decorrente da morte de Jesus Cristo na cruz se aplica exclusivamente aos eleitos, não beneficiando os não-eleitos)
- Irresistible Grace (Graça irresistível, isto é, a graça de Deus, que se manifesta na eleição, e que resulta na salvação dos eleitos, é irresistível, não podendo ser recusada pelos eleitos)
- Perseverance of the Saints (Perseverança dos santos, isto é, uma vez eleita, a pessoa, aqui chamada de “santa”, não tem como perder a sua condição de eleita, mesmo na improvável hipótese de querer fazê-lo)
(Confira-se http://www.reformed.org/calvinism/).
Como se vê, as primeiras letras das cinco frases em Inglês formam a palavra TULIP (tulipa, em Português, que, a propósito, é a flor nacional da Holanda, onde viveu Armínio), que acabou por representar o Calvinismo Ortodoxo.
Além de Olson, vários outros dos principais representantes da Tradição Reformada no século XX, como os suíços Karl Barth e Emil Brunner (Barth mais do que Brunner), dificilmente podem ser qualificados como endossantes do Calvinismo Ortodoxo ou como Hiper-Calvinistas (vá lá, já que a expressão é comumente usada).
A forma de governo adotada pela Igreja Presbiteriana, a principal representante da Tradição Reformada, é oriunda da Escócia, não da Suíça ou de Estrasburgo, e foi detalhada, no século XVI, por João Knox, principal responsável pela existência, na Escócia, de uma igreja reformada, não anglicana. Mas é inegável que Knox absorveu os princípios que acabou incorporando na Igreja Presbiteriana Escocesa em sua permanência em Genebra. [Vide abaixo o parágrafo em que se discute o termo “reformado/a”.]
O Muro dos Reformadores existente no Parque dos Bastões, em Genebra, a praça que fica em frente à Universidade de Genebra, fundada por Calvino em 1559, homenageia, em primeiro plano, as figuras de Guilherme Farel, João Calvino, Teodoro de Beza e João Knox. Esses foram os teólogos que trabalharam na própria cidade de Genebra (embora Knox tenha ficado em Genebra relativamente pouco tempo). Farel foi o iniciador da reforma em Genebra. Seu maior mérito foi ter percebido que o desafio era muito grande para ele só e ter insistido junto a Calvino (que apenas passava por Genebra com destino a Estrasburgo) para ficar na cidade e, na realidade, comandar o processo ali. Zuínglio e Bucer não foram homenageados no Muro provavelmente por não serem genebrinos ou calvinistas. Talvez pela segunda razão, pois, em segundo plano, o Muro homenageia figuras não-genebrinas importantes no mundo reformado. À esquerda do grupo principal estão Gaspar de Coligny, da França, Guilherme o Taciturno, da Holanda, e Frederico Guilherme, de Brandenburgo, no Norte da Alemanha (perto de Wittenberg, onde atuou Lutero). À direita do grupo principal estão Roger Williams, dos Estados Unidos, Oliver Cromwell, da Inglaterra, e, surpreendentemente, Etienne Brocskay, da Hungria (surpreendentemente porque Etienne Brocskay é virtualmente ignorado hoje em dia, diferentemente dos outros cinco que compõem os dois grupos laterais.
[http://www.ville-geneve.ch/monuments-lieux-interet/patrimoine-monuments/reformateurs/]
É preciso esclarecer, portanto, que o adjetivo “reformado/a” (nas expressões Tradição Reformada, Igreja Reformada, Confissão Reformada, Teólogo Reformado) tem esse sentido específico, meio sui generis: não se refere à Reforma Protestante, como um todo, mas, sim, à Reforma Protestante que nos foi legada por Genebra, a Suíça (Zurique, Basiléia, Berna, etc.), a cidade livre de Estrasburgo e pela Escócia (mais sobre isso adiante). Os mais “ortodoxos” deixam até mesmo a Suíça (menos Calvino) e Estrasburgo (Zuínglio e Bucer) de fora, ficando apenas com Genebra (Calvino e, muito secundariamente, Beza) e, no tocante à forma de governo, com a Escócia (Knox).
Esclareça-se ainda que foi principalmente através das Ilhas Britânicas (Escócia, Irlanda e Inglaterra) que a tradição reformada ou presbiteriana chegou ao Brasil – via os Estados Unidos.
Por fim, é bom registrar que Leith, em seu livro, faz questão de enfatizar que “as tradições [em geral, incluindo a reformada] são aprendidas, antes de tudo, numa comunidade viva, não nos livros” [p.10]. A leitura, portanto, que apenas informa, não substitui a aprendência que se dá pela vivência interativa, ou comunhão, que tem lugar numa comunidade – no caso, reformada.
Duas últimas palavras.
A primeira, sobre Genebra, que, apesar de ser hoje parte importante da Suíça, não o era quando da Reforma do século XVI. Na ocasião Genebra era uma república independente, composta da cidade, propriamente dita, que era, do ponto de vista do Sacro Império Romano, uma cidade livre, e da região que a cerca, que, hoje, em seu conjunto, formam o Cantão de Genebra, parte integrante da Confederação Helvética (Confoederatio Helvetica ou Confédération Helvétique ou Schweizerische Eidgenossenschaft ou Swiss Confederation / Confederacy) — nome oficial do país, razão pela qual seu código internacional é CH. Genebra só veio a ingressar voluntária e formalmente na CH no ano de 1870, sendo seu ingresso oficializado no comecinho de 1871.
A segunda, sobre nomes faltantes na caracterização da Tradição Reformada da primeira metade do século XVI no relato de Leith. Da Suíça, além de Calvino (pois Leith considera Genebra como parte da Suíça), Leith menciona apenas Zuínglio. Como ele menciona Beza, que foi o braço direito de Calvino em Genebra, deveria Leith deveria também ter mencionado Henrique Bullinger, que não só foi o braço direito de Zuínglio, enquanto este viveu, mas ficou com a responsabilidade de implantar a Reforma na cidade, depois da morte prematura de Zuínglio (em combate bélico contra os Católicos) em 1531. Ou seja, Zuínglio teve no máximo dez anos de serviço efetivo na causa reformada em Zurique (1521 a 1531 — apesar de ele afirmar que desde 1516, antes de Lutero, já pregava as ideias reformadas na cidade, algo a que a maioria dos historiadores não dá muito crédito), enquanto Bullinger comandou a causa reformada na cidade de 1531 a 1575, ou seja, por nada menos do que 44 anos. Além de deixar Bullinger de fora, Leith deveria também ter mencionado João Oicomlampádio, que trabalhou em Basiléia (Basel, Bâle) e vizinhanças (inclusive em Berna, hoje a capital da Suíça), e que foi um personagem importante na “Reforma Reformada” (embora também tenha morrido em 1531, com menos de 50 anos, pois nasceu em 1482). No tocante a Basiléia, Leith poderia também ter mencionado Desidério Erasmo, que residiu em Basiléia e foi influente sobre Zuínglio durante os estudos deste, segundo o próprio Zuínglio admite e faz questão de reconhecer, embora Erasmo, principalmente depois de sua controvérsia com Lutero, tenha sempre feito questão de se distinguir dos Reformadores Protestantes. Basiléia é uma cidade importante, porque fica no ponto em que Suíça, Alemanha e França confluem. Consta que há um “redondo” (balão) em Basiléia que, se você o contornar por inteiro, passará, em rápida sucessão, em menos de 30 segundos, pelos três países.
Post Scriptum de 15/06/2017:
Resta discutir por que, num universo de várias tradições da Reforma, uma delas, a suíça-genebrina-estraburguense-escocesa, de inspiração principalmente calvinista, é chamada de “Tradição Reformada” — nome que sugere que as outras tradições não seriam reformadas. Confesso que não tenho resposta convincente para essa questão. Tenho a impressão de que se trata de um daqueles casos em que um nome pega, embora não faça muito sentido, mas, com o tempo, não há como consertar o uso generalizado do termo.
Algo parecido acontece com o termo “evangélico”. Lutero dizia que sua teologia era evangélica. Muitas igrejas reformadas europeias (reformadas no sentido visto aqui, se denominam de “Igreja Evangélica Reformada”. O termo “evangélico” foi usado num sentido mais restrito quando surgiram os reavivamentos na Inglaterra e nos Estados Unidos, nos séculos XVIII e XIX, para designar os “avivados” ou “reavivados” — vis-à-vis aos “tradicionais”. Hoje em dia se chamam e são chamados de “evangélicos” os cristãos da tradição criada com a tentativa de um grupo significativo de anti-liberais ou simplesmente não-liberais, nas igrejas americanas de várias denominações, não quererem ser confundidos com os “fundamentalistas”, que eram, além de anti-liberais, separatistas, não dispostos a conviver com os que não eram como eles. A data dessa decisão de “vamos nos diferenciar” é geralmente identificada com a criação da Associação Nacional de Evangélicos (National Association of Evangelicals – NAE), por Harold Ockenga, em 1942, sendo os principais líderes, além de Ockenga, Billy Graham, Carl Henry, e o pessoal que em seguida fundou o Fuller Seminary, na California (Ockenga entre eles), que ficou sendo, por um bom tempo, o principal centro de teólogos evangélicos, nesse novo sentido. Eles fundaram também a revista Christianity Today, que foi liderada por Carl Henry por muito tempo, e que existe até hoje. E eles se envolveram como chamado “Pacto de Lausanne”, ou o endossam, identificado com os nomes de Billy Graham, Carl Henry e John Stot.
Assim, dizer-se “Evangélico”, hoje em dia, pode significar que a pessoa:
- não é nem fundamentalista, nem liberal, ficando entre essas duas correntes, sendo conservador teologicamente, mais ou menos como os fundamentalistas, mas não sendo separatista, e sendo progressista socialmente, mais ou menos como os liberais, mas não sendo teologicamente tolerante ou inclusivo como eles;
- é “avivada”, adere a um protestantismo tendente a práticas carismáticas ou pentecostais;
- simplesmente é protestante (em alguma das variantes), sem outro qualificativo.
Numa nota pessoal, mas que julgo interessante, meu pai, que foi pastor presbiteriano de 1941 a 1991, e que nos primeiros dez anos de pastorado foi pastor missionário, que fundava (hoje se diz plantava) igrejas em locais em que não havia a presença protestante ainda, colocava, na frente dos salões de culto, uma placa grande, em geral pintada (competentemente) por ele próprio, que se tratava de uma “Igreja Cristã Presbiteriana”. Quando ele se apresentava, em especial em artigos em jornais, descrevia-se como “Ministro Evangélico” (deixando o “Cristão” e o “Presbiteriano” de lado).
Em São Paulo, 14 de Agosto de 2015, revisado em Salto, 15 de Junho de 2017; transcrito neste blog em 15 de Junho de 2017