Lutero e Karlstadt: Primeira Consideração

Meu estudo da História da Igreja tem me sugerido que, toda vez que um indivíduo se convence de que é escolhido de Deus para realizar uma determinada missão, ele rapidamente passa a acreditar que a justificativa e os detalhes da missão não foram concebidos por ele, mas, sim, lhe foram revelados diretamente por Deus.

Nesse quadro, qualquer um que questione suas premissas está, automaticamente, não só errado, do ponto de vista epistêmico, como também do lado do Diabo, e, por conseguinte, deve ser combatido com todas armas à disposição, inclusive a mentira — porque vale mentir para combater o “Pai da Mentira”…

A crença na escolha por Deus e na revelação divina leva o indivíduo ao dogmatismo, o seu dogmatismo o leva à intolerância, e a sua intolerância o leva à repressão e à perseguição dos dissentâneos.

Essas considerações são minhas — vide o meu artigo “Engaiolando o Pensamento: Tecnologia, Religião, Ortodoxia, Dogmatismo, Intolerância e Repressão”, que publiquei em 20/5/2015 (mais de dois anos atrás) no meu blog Liberal Space [1].

Essas considerações são minhas, mas isso não quer dizer que elas nasceram comigo. Como ele próprio disse, eu as encontrei, achei-as saborosas, comi-as, digeri-las, elas entraram no meu sistema e passaram a ser parte de mim. O autor dessa metáfora é meu saudoso amigo Rubem Alves, e foi dele que eu tomei essas ideias por empréstimo, até que, depois de passar tanto tempo dentro de mim, elas se tornaram minhas também. Ele as divulgou de vários púlpitos e as publicou em especial em dois livros seus: o primeiro é Protestantismo e Repressão [2], e o segundo é Dogmatismo e Tolerância [3]. Em uma edição posterior à original, o título do primeiro desses livros foi alterado para Religião e Repressão) [4].

Apesar de as ideias originalmente não serem minhas, ficou até certo ponto realizado ao constatar o que diz, acerca de Lutero, o grande historiador Scott H. Hendrix:

“A saúde de Lutero estava em deterioração na parte final da década de 30. Talvez seja isso que o tenha levado a exacerbar as críticas que fazia aos seus adversários. Os únicos adversários ativos que ele realmente tinha, nessa época, eram governantes e teólogos católicos. Mas, para Lutero, ‘adversário’ era qualquer pessoa ou grupo de pessoas que não cooperava com sua missão de restaurar um Cristianismo purificado na Alemanha.” [5]

Nesse quadro, até os amigos de Lutero, se não endossassem totalmente o que ele pensava, tornavam-se seus adversários.

Como afirmo em um trabalho que estou escrevendo sobre Andreas Rudolph Bodenstein von Karlstadt (1486-1541) [6], e que vou apresentar no simpósio As Outras Faces da Reforma Protestante, na Universidade Mackenzie (Deo volente), em Novembro deste ano [7], a perseguição que Lutero fez a Karlstadt, que era, primeiro, seu chefe (que lhe entregou o diploma de Doutorado em 1512), e depois seu colega na Universidade de Wittenberg, só se explica por considerações basicamente nesta linha: chegou um ponto em que Lutero não admitia que ninguém discordasse dele, porque achava que as opiniões dele, Lutero, eram indistinguíveis da verdade divina…

É verdade que, mais tarde, Lutero se comoveu um pouco com a situação precária em que Karlstadt estava a viver, em grande parte por sua culpa, e, talvez por remorso, talvez por insistência de sua generosa mulher, Katharina von Bora, abrigou Karlstad em sua casa Wittenberg (que era o Mosteiro Agostiniano que o Príncipe-Eleitor da Saxônia deu de presente a Lutero e Katharina, como moradia permanente, quando eles se casaram em 1525). O fato de Katharina ter sido escolhida como madrinha de um dos filhos de Karlstadt pode ser indicativo do fato de que Karlstadt estava convicto de que, não fora pela influência de Katharina, Lutero não teria demonstrado alguma compaixão e generosidade por seu antigo chefe e colega — e rival na área de teologia e política eclesiástica! [8]

Concluindo, algo parecido aconteceu para causar o desentendimento entre Lutero e Johannes Agricola (1494-1566) [9]. Lutero havia admitido, no passado, que seu amor por Agricola só era menor do que seu amor por Melanchthon. E, no entanto, ambos vieram a se desentender gravemente no bojo da chamada “Controvérsia Antinomianista”. Pergunta Hendrix:

“A sua [de Lutero] esnobação de Agricola teria sido causada pela platitude de que o amor pode, facilmente, se tornar ódio? Ou será que Lutero era incapaz de tolerar discordância mesmo que oriunda daqueles a quem ele amava? Talvez ambas as coisas. Ser um amigo ou um colega chegado de Lutero era uma condição extremamente precária. Sua rejeição de Karlstadt, de quem ele nunca havia sido tão amigo como o fora de Agricola, sugere que Lutero condicionava suas amizades com colegas à concordância destes com ele e à sua deferência para com ele. Desde 1521, Lutero passou a acreditar que ele era sujeito apenas ao Senhor, e tão somente a ele, que lhe havia revelado o evangelho genuíno e confiado a ele a sua propagação. Sentindo o peso dessa sanção divina, Lutero faria quase qualquer coisa para garantir que a reforma prosperasse, e isso incluía adaptar a mensagem evangélica para diferentes audiências. Agricola não conseguia aceitar essa adaptação flexível, e o comportamento desalmado de Lutero acabou por afasta-lo“. [10]

Notas

[1] O artigo pode ser encontrado em https://liberal.space/2015/05/20/engaiolando-o-pensamento-tecnologia-religiao-ortdooxia-dogmatismo-intolerancia-repressao/.

[2] Editora Ática, São Paulo, 1979.

[3] Editora Paulinas, São Paulo, 1982.

[4] Edições Loyola, São Paulo, 2005.

[5] Martin Luther: Visionary Reformer (Yale University Press, New Haven, 2015, 2016), pp.263-264. Tradução minha.

[6] Vide, na Wikipedia PT, https://pt.wikipedia.org/wiki/Andreas_Karlstadt.

[7] Vide, neste blog, o artigo “Evento no Mackenzie em 12112017”, que contém o panfleto e o programa do evento, em https://reformation.space/2017/06/19/evento-no-mackenzie-em-23112017/.

[8] Estarei a discutir essa questão, nos próximos dias, neste blog, em uma série de artigos com o título geral de “Lutero, Erasmo e Karlstadt”. O artigo consistirá de três partes, que serão publicadas separadamente: “1 – Introdução: Amigos ou Inimigos?”; “2 – Erasmo: A Resposta da Direita”; “3 – Karlstadt: A Resposta da Esquerda”.

[9]  Vide, na Wikipedia PT,  https://pt.wikipedia.org/wiki/Johannes_Agricola. Compare-se Hendrix, op.cit., pp.256-258.

[10] Hendrix, op.cit., p.258. Tradução minha. Ênfases acrescentadas.

Em São Paulo, 12 de Junho de 2017; revisto em Salto, 22 de Junho de 2017.

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