Segundo Scott H. Hendrix, em seu magnífico livro Martin Luther: Visionary Reformer (Yale University Press, New Haven, 2015, 2016), Lutero, depois de escrever uma peça de um ritual litúrgico – a Missa Alemã – para ser usada na liturgia luterana, para cuja composição contou com o concurso até mesmo de músicos profissionais pagos pelo eleitor (o nobre responsável pelo governo) da Saxônia, não ficou muito contente… Vou resumir, nas minhas palavras, e com certa liberdade, o que diz Hendrix (pp.175-176; cp. pp. 122-123, em ambos os casos da edição em paperback).
A Missa Alemã era uma versão adaptada de uma peça católica equivalente, escrita em Latim, que Lutero traduziu para o alemão e adaptou (ele não fez uma mera tradução: ele adaptou a missa para a teologia luterana). A causa de sua parcial frustração estava no fato de que, entre os que iriam assistir aquela Missa Alemã, estariam, além de meros curiosos, gente que não era luterana – e, que, na verdade, nem cristã era, na forma de ver as coisas que ele achava certa. O que ele gostaria de estar fazendo, não era adaptar uma missa católica para a língua alemã e para a teologia luterana, mas, sim, participar de cultos informais, espontâneos, frequentados apenas por gente que fosse cristã do jeito achava que deviam ser, e que professasse o evangelho genuíno e adorasse a Deus com suas mãos, com suas bocas, com seus corpos inteiros… sem precisar obedecer regras e rituais litúrgicos que os obrigavam a ficar passivos e quietos, sem se envolver protagonisticamente, e até mesmo sem participar…
O sonho de Lutero para o Cristianismo Reformado ia muito além de meros ajustes no Cristianismo Católico. O culto reformado, para ele, não seria um culto formal, realizado em um templo, de acordo com rituais e liturgias aprovadas por uma hierarquia eclesiástica. O culto reformado seria algo informal e espontâneo, para o qual, se fossem necessárias normas práticas de organização, elas adviriam da experiência da comunidade que o celebrava, sem necessidade de imposições vindas de fora e de cima. Se deixássemos o amor, a liberdade, a oração e a palavra de Deus guiar as nossas formas de culto, elas não precisariam ter lugar num determinado horário, numa igreja ou num templo, mas transbordariam para a rua e para a vida do dia-a-dia, conforme as pessoas achassem necessário cultuar a Deus e a celebrar sua salvação. Lutero não gostaria que houvesse separação entre o religioso e o secular, entre o templo e a rua, entre o culto e a vida cotidiana, entre a adoração e a gratidão a Deus e o serviço ao próximo… O culto reformado não era para ser conduzido por sacerdotes e monges celibatários, ou mesmo por pastores, ainda que casados, isto é, por um “estamento de religiosos”. Afinal de contas, não são todos os crentes sacerdotes? É o batismo que “cristianiza” as pessoas, transformando-as em sacerdotes. O casamento dos sacerdotes cristãos (que ainda hoje chamamos de leigos) é o seu estado natural, que Deus pretendeu que tivessem. “Nada deve ser considerado realmente religioso senão a vida de fé no interior de cada um em cujo coração reina o Espírito”, disse Lutero. Essa fé produz boas obras (que, embora não gerem méritos para a salvação, pois esta é gratuita), mas essas boas obras não são ações voltadas para a igreja (jejuns, sacrifícios, penitências, ofertas, orações, leituras da Bíblia, frequência aos cultos, participação nos sacramentos…). As boas obras que resultam da fé que justifica são, isto sim, ações de amor e de busca de justiça realizadas no mundo, e que beneficiam ao próximo, não a Deus, que não precisa delas…
Assim, ao escrever a Missa Alemã, Lutero estava se contentando (mas não muito) com algo que ficava muito aquém do ideal que ele imaginava… Ele tinha, a muito custo, se convencido de que era necessário conviver ainda com estruturas e práticas nas quais ele não acreditava mais, mas que, adaptadas, poderiam ser úteis…
Os seus quase onze meses de reclusão no Castelo de Wartburgo, junto dos distúrbios gerados em Wittenberg pela tentativa de Karlsatad e alguns outros de acelerar as reformas, mostraram a Lutero que não é produtivo andar depressa demais, mesmo que seja na direção daquilo que temos certeza que é certo e desejável – porque há muitos que não estão no mesmo ritmo que nós, e que vão ter dificuldade para se adaptar ao novo que, para nós, já é indispensável… Depois de seu “exílio”, ele concluiu, como os compositores (Renato Teixeira e Almir Satler), que, de vez em quando, é preciso andar devagar, porque temos pressa… (“festina lente”, segundo Augusto César). Mas Lutero, sempre impaciente e impetuoso, aprendeu que “andar devagar” não é a mesma coisa que ficar parado… É andar, mas andar com calma, cuidado e cautela (três “c’s” importantes para quem está procurando, em última instância, mudar, inovando, instituições que são caras para muita gente…). Caso contrário, corre-se o risco de perder até o que já se conquistou. Por isso Lutero compôs a Missa Alemã – como um recurso litúrgico de transição, que seria descartado quando se tornasse possível andar mais depressa… Era o que era possível, naquele momento – mesmo que estivesse longe do que ela idealisticamente desejava… O ideal, às vezes, precisa dar lugar ao possível, para que possa se tornar factível, mais adiante.
Em São Paulo, 11 de Junho de 2017.