Vou começar falando do “Tesouro de Méritos” inventado pelo Papa Clemente VI… (E quero dizer literalmente inventado.)
Em 1343 – seiscentos anos antes de eu nascer – o Papa Clemente VI inventou uma doutrina que veio a render muito dinheiro mas também muita publicidade negativa para a Igreja Católica. A doutrina em questão pode ser chamada de “Tesouro de Méritos”.
Em sua Bula “Unigenitus”, Clemente VI constrói o seguinte argumento (vou usar, em grande medida, a linguagem do Papa):
- Jesus Cristo, com seu sacrifício na cruz, comprou a nossa redenção com o seu próprio sangue (não com o sangue de ovelhas e cordeiros, como acontecia na religião judaica);
- O sangue que ele verteu por nós na cruz era sangue precioso porque não foi contaminado pelo pecado (posto que Jesus Cristo não nasceu de uma união sexual normal, mas por obra do Espírito Santo de Deus);
- Uma gota apenas desse sangue é mérito mais do que suficiente, diante de Deus, para redimir os pecados de toda a raça humana;
- No entanto, não foi uma gota de sangue apenas que ele verteu na cruz, mas um “dilúvio copioso”;
- Isso significa que a morte de Jesus Cristo na cruz gerou uma quantidade infinita de mérito que, não tendo sido usado, tornou-se um tesouro de méritos precioso que pode ser usado a qualquer momento;
- Esse tesouro Deus Pai colocou à disposição da Igreja, que pode dispor dele para garantir que as pessoas venham a se beneficiar do amor de Deus de forma mais rápida e completa;
- Não há risco desse tesouro um dia vir a se esgotar, porque a ele foram acrescentados os méritos da Virgem Maria, dos santos e de todos os eleitos, do primeiro ao último, que morreram e continuam morrendo com crédito diante de Deus;
- Além disso, cada vez que se faz uso dos méritos acumulados nesse tesouro para justificar alguém (no sentido teológico do termo), mais pessoas passam a pertencer ao grupo daqueles capazes de produzir mais méritos, de modo que o tesouro, longe de se esgotar, se enriquece cada vez mais, mesmo quando é usado;
- Pedro, Primeiro Bispo de Roma, que havia recebido de Jesus Cristo as chaves do céu, ao morrer as transmitiu ao seu sucessor, e ele, ao seu, assim por diante, até hoje, de modo que em qualquer momento cabe ao Papa, e a ninguém mais, decidir como esse tesouro será utilizado e autorizar empregos específicos dos méritos nele acumulados [1].
É isso. Esta é a base doutrinária para a doutrina das Indulgências e ela foi construída 174 anos antes de Lutero divulgar suas 95 Teses em 31 de Outubro de 1517.
A Igreja do início do Século 16 precisava de dinheiro para construir uma nova Basílica de São Pedro. Solução: ela emite indulgências, isto é, certificados escritos que foram se tornando cada vez mais valiosos – e não apenas no aspecto financeiro. Isso já vinha sendo feito há muito tempo. A construção da nova Basílica de São Pedro não foi a primeira vez que a Igreja lançou mão das Indulgências. Essa vez se tornou famosa porque Lutero resolveu, por assim dizer, criar encrenca.
As indulgências, inicialmente, não perdoavam pecados: elas apenas reduziam o tempo que o Infrator (o Confessante ou Penitenciário) deveria passar no Purgatório para cumprir as penalidades que lhe foram impostas pelo seu Confessor cada vez que ele confessava (o ser humano sempre posterga deveres desagradáveis de fazer).
Inicialmente, cada Confessante e Penitenciário comprava Indulgências de forma “preemptiva”, isto é, para si próprio, antes de morrer, para a eventualidade de vir a morrer antes de pagar em vida todas as penalidades acumuladas pelos seus muitos pecados, ou para a eventualidade de vir a morrer sem ter confessado todos os seus pecados (eventualidades essas que, dizia a Igreja, sempre ocorriam, pois o ser humano é chegado a um pecado e não é muito chegado a confessa-los nem a cumprir as penitências determinadas pelo Confessor). Neste caso, ao comprar as Indulgências para si próprio, o comprador, que era ao mesmo tempo o Confessante e Penitenciário, tinha de estar no mesmo estado mental em que estaria se fosse efetivamente confessar os pecados e cumprir as penitências, a saber, contrito e arrependido.
Com o tempo, porém, tornou-se possível para uma pessoa comprar indulgências para pessoas que já haviam morrido, mas que estavam padecendo no Purgatório, ou por terem morrido sem ter podido confessar vários pecados, ou, então, por terem confessado todos os seus pecados, mas não terem podido cumprir todas as penitências antes de morrer. Essa alternativa era extremamente atraente e oportuna para quem não gostava de imaginar que seu pai e sua mãe, ou seu avô e sua avó, estivessem padecendo no Purgatório e pudessem ficar ainda muito mais tempo lá. Neste caso, a compra poderia ser feita por pessoas que não estavam no estado mental de contrição e arrependimento, pois as Indulgências não eram para elas: eram para pessoas que já haviam morrido. Presumia-se, na hipótese, que os falecidos tivessem, na hora de morrer, demonstrado arrependimento e contrição.
Se é possível comprar indulgências para quem já morreu, por que não para quem ainda não nasceu, alternativa extremamente oportuna para quem não gosta de imaginar que seus filhos e seus netos pudessem vir a padecer durante muito tempo no Purgatório, especialmente numa época em que muita criança morria cedo, às vezes logo depois de nascer, levando consigo a carga do pecado cometido, ou do pecado original, que nem teve tempo ou condições, em vida, de confessar, quanto mais de expiar as decorrentes penalidades…
Com o tempo, finalmente, os vendedores de indulgências fizeram um upgrade em seu discurso, e começaram a reivindicar que as Indulgências poderiam ser usadas, não só (a) para reduzir o tempo no Purgatório correspondente a penalidades não cumpridas em vida, mas, também, numa variante com o preço devidamente reajustado, (b) para perdoar pecados cometidos mas que não haviam sido confessados quando da morte (para os quais, portanto, não havia sido imposta uma penalidade) — e mesmo, (c) para perdoar pecados que nem sequer haviam ainda cometidos em vida! [2]
Havia indulgências que custavam muito caro, porque garantiam o perdão de muitos pecados e de penalidades equivalentes a até mais de um milhão de anos de tempo no Purgatório… (o tempo passado no Purgatório poderia ser muito longo na imaginação do pessoal da Idade Média!).
A coisa ficou feia na região de Lutero por um agravante. O arcebispo de Mainz (Mogúncia, segundo os puristas), Alberto (Albrecht) de Brandenburgo (1490-1545), filho de uma família muito rica (os Hohenzollern, responsáveis por uma das grandes dinastias a governar o Sacro Império Romano, a Alemanha e a Prússia), havia conseguido a nomeação para a arquidiocese de Magdeburgo quando tinha apenas vinte e três anos (em 1513). Esse era a única arquidiocese que estava à venda na época (falo literalmente: não é só um jeito de falar). O Arcebispo de Madgeburgo tinha jurisdição sobre Wittenberg, a cidade em que Lutero morava e trabalhava. Em 1514, um ano depois de Alberto se tornar Arcebispo de Magdeburgo, e também de responder pela Diocese de Halberstadt, vagou a poderosa arquidiocese da grande cidade e rica imperial de Mainz (do outro lado da Alemanha!) – e o Arcebispo decidiu: “Prefiro ser Arcebispo desta cidade!” Mas o direito canônico impedia uma pessoa só de ocupar duas arquidioceses. “Mas posso trocar?”, certamente raciocinou ele. A resposta que recebeu da Igreja ao discutir o assunto aparentemente foi algo semelhante a um “Hummm” que indicou a ele que havia, sim, espaço para negociação… O arcebispo entendeu o sinal. Procurou os maiores banqueiros da Alemanha, a Casa de Fugger, de Augsburgo, fez um enorme empréstimo (21 mil ducados), e dirigiu-se a Roma. Ali deve ter feito uma proposta irrecusável, porque saiu de lá com o que parece ter sido um dos melhores negócios da Idade Pré-Moderna: foi nomeado Arcebispo de Mainz (ainda em 1514), sem precisar abrir mão da arquidiocese de Magdeburgo (e de responder pela diocese de Halberstadt), e, ainda mais: (a) obteve do Papa autorização para vender Indulgências na sua região, e reservar, para pagamento do empréstimo feito junto da Casa de Fugger, 50% (cinquenta por cento), um percentual mais do que significativo, da receita oriunda da venda das Indulgências em sua região… (b) obteve a promessa de que o primeiro chapéu de Cardeal que aparecesse vago seria dele… Em 1518, a promessa foi cumprida e ele se tornou também Cardeal! E veio a morrer só em 1545, vinte e sete anos depois, ainda Bi-Arcebispo e, por cima, Cardeal. Repita-se que Alberto de Brandenburgo, na qualidade de Arcebispo de Magdeburgo, era o Arcebispo que tinha jurisdição sobre Wittenberg, cidade próxima, e, portanto, sobre Lutero [3].
Algum dos leitores acha que um jovem (bem, nem tanto: já tinha 34 anos) e rebelde como Lutero iria ficar quieto diante disso? Ele não só escreveu as 95 Tese (refira-se a elas como as XCV Teses, fica chique), como enviou para o Arcebispo Alberto, que era o seu arcebispo, uma cópia, dizendo que o pessoal andava dizendo coisas horrorosas a respeito dele por causa desse acordo, e recomendando, do alto de sua autoridade (era sete anos mais velho do que o Arcebispo) que Alberto de Brandenburgo deveria maneirar um pouco…
O leitor sabe o que o Arcebispo Alberto fez? Convocou seus assessores jurídicos, conseguiu deles uma análise que concluía que, nas suas teses, Lutero questionava a autoridade papal de emitir Indulgências e de autorizar sua venda para a finalidade que julgasse necessária… E o Arcebispo Alberto enviou as XCV Teses de Lutero e o parecer de seus assessores para o Papa Leão X, a quem ele, naturalmente, respondia…
A trama que levou à Reforma Protestante Luterana estava devidamente engatilhada.
O leitor achava que havia sido só um papelzinho de conteúdo teológico pregado na porta de uma igreja de uma cidadezinha insignificante que havia provocado a Reforma Luterana que dividiu a Europa e revolucionou o mundo? Havia coisa muito mais pesada por trás do papelzinho: uma das principais formas de financiar as atividades da Igreja Católica daquela época!
OBSERVAÇÃO: Não estou a sugerir que as causas da Reforma foram puramente econômicas. Não foram. Nem que eram exclusivamente religiosas ou teológicas. Tampouco o eram. Nem, muito menos, que questões econômicas e teológicas nunca se misturam. Naquela época eram muito mais misturadas do que hoje (e hoje ainda o são). A questão é bem mais complexa. Nem estou a sugerir que, quando escreveu suas 95 Teses, Lutero soubesse das negociadas do Arcebispo Alberto de Brandenburgo — embora elas já houvesse acontecido — há quase três anos — e o fato não fosse segredo. Mas em 1517 Lutero, ainda um monge, estava muito por fora do que se passava “no mundo” que extrapolava os muros do mosteiro em que vivia, as paredes da igreja em que pregava, e as salas de aula da universidade em que era professor de Teologia. Em outros artigos essas questões serão esmiuçadas um pouco — junto com um elemento cultural importante: alemães, como era Lutero, e italianos, se detestavam — em grande medida por estes, que se julgavam culturalmente finíssimos, achavam que os alemães não passavam de bárbaros [4].
NOTAS
[1] Compare-se “A Bula ‘Unigenitus‘ de Clemente VI” em Henry Bettenson, ed. Documents of the Christian Church (Oxford University Press, Oxford, 1943, 2nd ed. 1963, pp.256-257; há edição brasileira, com o título Documentos da Igreja Cristã, tradução da 2a edição inglesa de Helmut Alfredo Simon (ASTE, São Paulo, 5a ed. brasileira, 2011), pp.277-278.
[2] O Arcebispo Alberto de Mainz, figura central na venda das Indulgências na Alemanha, como se verá em seguida, venda que veio a acontecer depois de já vir acontecendo há algum tempo em outras regiões, afirmou o seguinte, em suas “Instruções” acerca das Indulgências: “A primeira graça [resultante das Indulgências] é a completa remissão de todos os pecados; nada maior do que isso se pode conceber, já que os homens pecadores privados da graça de Deus obtêm remissão completa por esses meios e de nova gozam da graça de Deus. Além disto, pela remissão dos pecados, o castigo que se está obrigado a suportar no purgatório por causa da afronta contra a divina majestade é totalmente perdoado e as penas do purgatório são completamente apagadas. E, embora nada seja por demais precioso para ser dado em troca de tal graça, visto que é um dom gratuito de Deus e a graça não tem preço, contudo a fim de que os fiéis cristãos sejam levados mais facilmente a busca-las, estabelecemos as seguintes regras”. Vide Bettenson, op.cit., pp.257-260 da 2nd ed. em Inglês, pp.278-281 da 5a ed. em Português, “Instruções dadas pelo Arcebispo Alberto de Mainz” para a venda das Indulgências. As “Instruções” são operacionais: ela mostra como a coisa funciona: como fixar preço, de acordo com o cliente, como convencê-lo a comprar mais indulgências, para beneficiar seus entes queridos, etc. Do ponto de vista teológico, curiosa a afirmação do Arcebispo, de que “a graça . . . é um dom gratuito de Deus e . . . não tem preço” — que seria um posição aparentemente luterana, se não viesse acrescida da observação de que os cristãos podem obtê-la “mais facilmente” comprando uma indulgência…
[3] Esse episódio é contado em bastante detalhe por Carlos M. N. Eire em seu magnífico livro Reformations: The Early Modern World, 1450-1650 (Yale University Press, New Haven, 2016), pp.146-150. Diarmaid MacCulloch, em seu não menos magnífico The Reformation: A History (Penguin Books, London, 2003, 2004, 2005), pp. 120-123, também tem um relato imperdível sobre o episódio.
Compare-se também a discussão extremamente interessante e informativa de Heinz Schilling, em Martin Luther: Rebell in einer Zeit des Umbruchs (C. H. Beck, Tübingen, 2017), pp. 165-167, que talvez seja, em biografias de Lutero e livros de História da Reforma, o relato que mais explicitamente se refere ao esquema de corrupção que, no caso das Indulgências, ia desde a Cúria Romana (envolvendo o Papa – no caso, Leão X) até, no outro extremo, o mais insignificante vendedor das indulgências (no caso da Saxônia, João Tetzel), passando pelo grande intermediário, o multi-Arcebispo Alberto de Brandenburgo). Os detalhes do envolvimento da Casa de Fugger, os principais banqueiros europeus da época, no esquema de financiamento da compra do Arquidiocese de Mainz por Alberto de Brandenburgo e na montagem do esquema de venda das indulgências no território sob sua jurisdição para gerar fundos que lhe permitissem pagar o empréstimo feito junto à Casa de Fugger, são narrados em detalhe no capítulo 8 do livro The Richest Man Who Ever Lived: The Life and Times of Jacob Fugger, de Greg Steinmetz (Simon & Schuster Paperbacks, New York, 2015), pp. 122-130. Jakob Fugger (1459-1525) era o chefe da Casa de Fugger no período que cobre os eventos aqui mencionados. Veja-se, por fim, também o excelente relato de Heiko A. Oberman, o mais antigo dos três relatos, em seu livro de 1982, Luther: Mensch zwischen Gott und Teufel (Severin und Seidler Verlag, Berlin), Kap. VI, pp.224-225 (Location 3384/6680 na edição em e-book/Kindle da Amazon). Há uma tradução para o Inglês, de Eileen Walliser Schwartbart, esgotada e muito difícil de ser encontrada, com o título Luther: Man Between God and the Devil (Yale University Press, New Haven, 1990, paperback Imago 1992). Na tradução a passagem referente a Alberto de Brandenburgo está às pp.188-190. [Essa biografia de Lutero é considerada a melhor biografia existente de Lutero por Lyndal Roper, historiadora e professora da Universidade de Oxford, e autora de uma excelente biografia (psicobiografia) recente de Lutero, com o título Martin Luther: Renegade and Prophet (Random House, New York, 2017).]
[4] Minha posição em relação à questão da natureza e das causas da Reforma é basicamente idêntica à de Peter Marshall, muito bem expressa no início do Prefácio de sua magnífica obra Heretics and Believers: A History of the English Reformation (Yale University Press, New Haven, 2017), pp. xi-xii, em passagem que tomo a liberdade de traduzir de forma meio livre e não literal (especialmente no final) e à qual acrescento algumas ênfases na forma de negrito: “De um lado, devo esclarecer que é uma pressuposição deste livro, pressuposição que acredito não precisar defender, (a) que os conflitos envolvidos na Reforma foram principalmente acerca de questões religiosas, e (b) que o aspecto religioso dessas questões não era um mero disfarce que escondia questões mais fundamentais ou ‘reais’ acerca de dominação social, poder político, e interesses econômicos. De outro lado, devo enfatizar (c) que seria um absurdo afirmar que as questões em jogo na Reforma eram ‘apenas e tão somente’ religiosas. Na verdade, fazer isso seria sugerir que a religião, naquela época, era um fenômeno isolado, desconectado de outras esferas de valor e sentido que afetam profundamente a vida que as pessoas do Século 16 de fato viviam. Muito pelo contrário. Insisto (d) que a ‘religião’ era, no Século 16, parte inextricável do tecido que envolvia todas as outras abstrações com que tentamos artificialmente separar os aspectos do complexo fenômeno que é a existência humana: não só sociedade, política, e economia, mas também a cultura (arte, literatura, gênero, etc.). Que símbolos ou argumentos religiosos possam ter sido usados para alcançar, em determinados momentos e contextos, fins sociais, políticos ou econômicos, ou mesmo culturais (num sentido que transcende o religioso), só serve para confirmar a profundidade e a importância da religião naquele contexto, não para mostrar que as questões religiosas eram mais rasas e menos significativas do que as questões sociais, políticas, econômicas e culturais (num sentido mais amplo de cultura)“. Em meu artigo “A Questão das Causas da Reforma (Peter Marshall)”, neste mesmo blog, em https://reformation.space/2017/06/05/a-questao-das-causas-da-reforma-peter-marshall/, discuto a questão das causas da Reforma em um pouco mais de detalhe.
Em Salto, 4 de Junho de 2017; revisto também em Salto, 14 de Junho de 2017; revisto e ampliado (nas notas), agora em São Paulo, 14 de Julho de 2017.
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