Lutero (1483-1546) era, acima de tudo, alemão, embora tenha nascido e morrido antes de a Alemanha ser o país unificado que hoje conhecemos. Era, na verdade, um saxão — nasceu e morreu na Saxônia. Nos Séculos 15 e 16, em que Lutero, respectivamente, nasceu e morreu, o que era chamado de Alemanha ou Germânia era um conglomerado de principados, ducados, condados, etc. mais ou menos unificado pelo Sacro Império Romano, que, na realidade, apesar do nome pomposo, era, basicamente um Império Germânico, que existia desde o ano 800 dC, quando, no dia de Natal, foi oficialmente sacramentado pelo Papa, com a coroação de Carlos, que veio a ser conhecido como Carlos Magno [1], como primeiro Imperador do Sacro Império Romano [2].
No processo de condução da Reforma Luterana na Alemanha, Lutero teve dois grandes inimigos no nível mais alto: O Papa e o Imperador do Sacro Império Romano.
Papas houve nada menos do que oito durante o período de vida de Lutero, a saber:
- Inocêncio VIII (1484-1492), italiano
- Alexandre Vi (1492-1502), italiano
- Pio III (1503-1503), italiano
- Júlio II (1503-1513), italiano
- Leão X (1513-1521), italiano
- Adriano VI (1521-1523), holandês
- Clemente VII (1523-1534), italiano
- Paulo III (1534-1549), italiano.
Discutiremos os Papas em outro artigo.
No tocante aos Imperadores do Sacro Império Romano, houve apenas dois (e um cobrindo quase que apenas o período pré-Reforma da vida de Lutero:
- Maximiliano I (1493-1519), Dinastia dos Hapsburgos
- Carlos V (1519-1556), Dinastia dos Hapsburgos
Desses, Carlos V foi o Imperador que realmente deve ser levado em conta, porque seu reinado cobriu todo o período em que Lutero estava realmente envolvido na Reforma (exceto pelo período da distribuição das 95 Teses e dos primeiros debates — como veremos na Cronologia da Vida de Lutero e da Reforma Luterana, a ser publicada em seguida).
Dizer que esses dois Imperadores são da Dinastia dos Hapsburgos dá, de imediato, a impressão de que são germânicos ou austríacos. Essa impressão é correta, mas apenas em parte. Os Hapsburgos conseguiram se relacionar, através de casamentos, com as principais dinastias europeias. O bisavô de Carlos V, pelo lado paterno, Frederico III, casou-se com uma princesa portuguesa, Eleanor. Seu avô, também pelo lado paterno, casou-se com uma princesa da Casa de Borgonha, que dominava, na ocasião os Países Baixos e parte da França, Maria. Seu pai, Felipe, filho de Maximiliano I, casou-se com uma princesa espanhola, Joana, A Louca, filha dos Reis Católicos da Espanha, Fernando e Isabela. E Carlos V, ele próprio, casou-se, como seu bisavô, com uma princesa portuguesa, Isabela. (Princesas portuguesas foram, nesse período, por duas vezes, e uma princesa espanhola, por uma vez, Imperatrizes do Sacro Império Romano). Dos filhos de Carlos V e Isabela, um, Felipe, veio a ser Rei da Espanha, como Felipe II, chamado O Prudente, uma, Maria, foi Imperatriz do Sacro Império Romano por ter se casado com Maximiliano II, filho de Fernando I, irmão de Carlos V, que sucedeu ao seu pai no trono do Império, uma filha ilegítima, Margarete de Parma, foi Governadora Geral da Holanda em nome da casa de Hapsburgo, e assim vai. O Imperador Carlos V teve vários filhos, nem todos com a colaboração da Imperatriz, e os distribuiu todos, mesmo os ilegítimos, em funções importantes na governança da Europa do Século 16, em países como a Áustria, a Espanha, a Holanda.
Carlos V, de nacionalidade espanhola — era neto, por parte de mãe, dos chamados Reis Católicos da Espanha, Fernando II (de Aragão) e Isabel I (de Castela) [vide https://pt.wikipedia.org/wiki/Reis_Católicos] — foi o Imperador do Sacro Império com o qual Lutero teve de lidar (e do qual teve de fugir permanentemente, de 1521 em diante). Carlos V não falava alemão (embora falasse espanhol, francês, etc. Na Dieta de Augusburgo em em 1530, em que foi lida a Confissão de Augsburgo, a leitura, diante do Imperador, que levou mais de duas horas, foi feita em Alemão — não tendo o Imperador entendido nada. . .
A finalidade deste artigo é esclarecer quais foram os antecedentes imediatos e o sucessor de Carlos V. Para tanto, vou me basear especialmente em algumas dicas valiosas de Carlos M. N. Eire [3].
FREDERICO III
Frederico III, 1415 –1493, conhecido como O Pacífico, foi Imperador do Sacro Império Romano de 1452 até a sua morte, em 1493, reinando, portanto, durante 41 anos. Ele foi o primeiro Imperador do Sacro Império Romano oriundo da Dinastia dos Hapsburgos (também chamados de Habsburgos, por alguns). Era ele o Imperador do Sacro Império Romano quando Lutero nasceu em 1483.
Frederico III se casou, em 1452, com Eleanor, de Portugal, 1434-1467, e os dois tiveram um filho, nascido em 1459, ao qual deram o nome de Maximiliano. Tivesse a Imperatriz tido a fortuna de viver mais tempo (ela morreu com 33 anos), Lutero teria nascido num momento em que a Imperatriz do Sacro Império Romano era portuguesa…
MAXIMILIANO I
Maximiliano I (1459-1519) sucedeu seu pai, como Imperador do Sacro Império Romano, de 1493 (data da morte de seu pai) até a sua própria morte, em 1519, já depois de Lutero supostamente ter pregado as suas 95 Teses na porta da igreja da Universidade de Wittenberg.
Em 1477, aos dezoito anos, Maximiliano se casou com Maria de Borgonha (1457-1482), unindo os territórios dos Hapsburgos na Áustria e na Europa Oriental com os territórios dos Borgonhas nos Países Baixos e na França.
Os dois tiveram um filho, Felipe, conhecido como O Corajoso (1478-1506), que veio a se casar com Joana, conhecida como a Louca (1479-1555), uma das filhas dos Reis Católicos da Espanha, Ferdinando e Isabel.
Felipe e Juana tiveram dois filhos: Carlos e Fernando.
CARLOS V
Carlos V, 1500-1558, foi Imperador do Sacro Império Romano, sucedendo ao seu avô, de 1519 (data da morte de seu avô, Maximiliano I) até 1556, quando ele abdicou em favor de seu irmão, dois antes de morrer, em 1558.
Antes de se tornar Imperador do Sacro Império Romano, Carlos V já era (desde 1516, quando tinha meros dezesseis anos), Imperador do Império Espanhol (como Carlos I), fato que o tornava:
- Rei da Espanha (que incluía Castela, Aragão, e a boa parte da região do Mediterrâneo, incluindo o Sul da Itália)
- Rei das possessões espanholas nas Américas (do Norte, Central e do Sul) e da Ásia
- Rei dos Países Baixos (Holanda, Bélgica e Franche-Comté)
- Rei de Nápoles e de boa parte do restante da Itália
Quando seu avô morreu ele também se tornou
- Rei da Áustria e de vários territórios da Europa Oriental (Leste Europeu)
Carlos V foi, durante cerca de vinte e cinco anos, ocupante do trone de três das principais dinastias europeias: as casas de Valois-Borgonha, Trastámara e Hapsburgo. Ele chegou perto de ser um Monarca Europeu Universal. Mas seus domínios se estenderam, territorialmente, além da Europa, alcançando cerca de quatrocentos milhões de quilômetros quadrados, sendo esse o “primeiro império no qual o Sol nunca se põe”. Carlos V continuou a ser responsável por esses domínios enquanto era Imperador do Sacro Império Romano, embora fosse ajudado em suas funções por seu fiel e prestimoso irmão, Fernando (que veio a sucedê-lo, quando ele abdicou).
Eis o que diz o historiador Carlos Eire acerca de Carlos V:
“Combinando as possessões ligadas à Casa de Borgonha, herdadas de seu pai (e de sua avó paterna), com as possessões espanholas herdadas de sua mãe (e de seus avós maternos, Carlos V herdou os Países Baixos [Holanda, Bélgica, Luxemburgo], Borgonha, Alsácia, Castela, Aragão, Nápoles, Sicília, Sardinha, as Ilhas Baleáricas, as Ilhas Canárias, os territórios cada vez maiores que a Espanha possuía ou reivindicava nas Américas. Como descendente de Eleanor de Portugal [sua bisavó por parte de seu avô paterno], ele também estava relacionada com a Dinastia Avis daquele reino. Como se tudo isso não fosse o bastante, em Janeiro de 1519, com a morte de seu avô paterno [Maximiliano I] …, Carlos V também adquiriu todas as vastas possessões na Áustria e na Europa Central [pertencentes aos Hapsburgos] e se tornou, instantaneamente, o principal candidato ao trono do Sacro Império Romano [que, de fato, veio a ocupar]. Carlos V, assim, passou a governar, pelo menos nominalmente, mais territórios do que qualquer monarca na história humana, até aquele momento, em especial se levados em consideração as possessões espanholas de além mar.” [p.166].
Eis o que diz o historiador Mark Greengrass acerca de Carlos V:
“Carlos V ganhou o grande prêmio. Quando chegou aos vinte e cinco anos, ele tinha direito a se considerar herdeiro de: setenta e dois títulos dinásticos diferentes, vinte e sete reinos, treze ducados, vinte e dois condados, e outros títulos senhoriais que se espalhavam do Mediterrâneo ao Báltico e se estendiam sobre o Novo Mundo. Isto significava que algo que se aproximava de 2,8 milhões de pessoas deviam a ele algum tipo de lealdade — ou seja, não menos do que 40% dos europeus ocidentais. Seu chanceler, Mercurino Gattinara, dizia a ele: ‘Deus foi muito misericordioso para contigo. Ele te elevou acima de todos os reis e príncipes da Cristandade de modo a alcançares um poder que nenhum outro soberano alcançou desde teu antepassado Charlemagne. Ele te colocou na trilha de uma monarquia global, que possa unir toda a Cristandade debaixo de um só pastor” . [4]
Como dito atrás, Carlos V casou-se com uma princesa portuguesa, Isabela (1503-1539), filha de ninguém menos do que Dom Manuel, O Venturoso, rei de Portugal quando o Brasil foi descoberto (1495-1521). Carlos V e Isabela se casaram em 1526. Durante nada menos do que treze anos, portanto, de 1526 (ano de seu casamento) até 1539 (ano de sua morte), uma princesa portuguesa foi Imperatriz do Sacro Império Romano enquanto prosseguia a todo vapor a Reforma Luterana…
Carlos V voluntariamente abdicou de todas as suas possessões a partir de 1554. Abdicou do trono do Sacro Império Romano em 1556, em favor de seu irmão Fernando. Ele (Carlos V) morreu em 1558.
FERNANDO I
Fernando I, 1503-1564, foi Imperador do Sacro Império Romano, sucedendo ao seu irmão, de 1556 (data da abdicação de Carlos V) até 1564, quando ele próprio morreu.
RESUMO
Frederico III, Maximiliano I, Carlos V e Fernando I todos foram Imperadores do Sacro Império Romano, em sequência, de 1452 até 1564, isto é, em um total de 112 anos, todos servindo à Casa de Hapsburgo, da qual Frederico III foi o primeiro Imperador do Sacro Império Romano.
NOTAS
[1] Carlos Magno, ou, em Latim, Carolus Magnus, pertencia à dinastia Carolíngia, dos Reis Francos, uma das Tribos Germânicas que invadiu a Europa ao final da Idade Antiga, razão pela qual é mais conhecido como Charlemagne entre os de fala francesa e inglesa e, a bem da verdade, no resto do mundo. Mas os habitantes da cidade em que ele está enterrado, Aachen, na Alemanha (hoje fica quase na confluência de três países: Alemanha, Holanda e Bélgica), em um sarcófago de ouro, num espaço, no altar, chamado de Santuário de Karl (Karlschrein), permanentemente disposto na magnífica Catedral da cidade (Aachner Dom), uma das mais lindas do mundo, preferem chama-lo de Karl der Große. Vide, na Wikipedia US, os seguintes artigos: https://en.wikipedia.org/wiki/Karlsschrein (para o caixão) e https://en.wikipedia.org/wiki/Aachen_Cathedral (para a Catedral). Do lado oposto do altar, parte de cima, bem no centro, com vista privilegiada do altar e do “Karlschrein”, está, ainda hoje, o trono do Imperador (“Königsthron”). Compare-se, na Wikipedia DE, este artigo, que contém uma bela foto do trono de Carlos V. [Vide https://de.wikipedia.org/wiki/Aachener_Königsthron]. Se pudessem mudar, os alemães, ou, mais provavelmente, os habitantes de Aachen, prefeririam chamar Karl der Große de Karl der Größte – Carlos, O Maior. [Vide https://de.wikipedia.org/wiki/Karl_der_Große].
[2] Hitler considerava o Império Romano Clássico o “Primeiro Reich”, e o Sacro Império Romano, o “Segundo Reich”. O Império Romano Clássico, que sucedeu à República Romana, foi oficialmente fundado em 27 aC, através de Augusto César (reinado: 27 aC até 14 dC), que na Bíblia é chamado de César Augusto. Sobrinho e filho adotivo do grande Júlio César (que teve papel proeminente na transição da República Romana, que existiu de 509 aC até 27 aC, para o Império Romano), Augusto César reinou durante quarenta anos e era o Imperador Romano no trono quando Jesus nasceu. O Império Romano Clássico durou, em princípio, de 27 aC até 476 dC no Ocidente e até 1453 dC no Oriente. No Ocidente, foi desmantelado pela invasão das Tribos Germânicas que vieram do Norte, e tomaram Roma, sua capital, e todo o resto, de assalto. No Oriente, pelos Turcos Muçulmanos do Império Otomano, que tomaram Constantinopla, e todo o resto, e os mantiveram sob controle, até a Primeira Guerra Mundial. Assim, o Império Romano Clássico durou, de certa forma, embora não intato, 1.480 anos, quase um milênio e meio. O Sacro Império Romano durou de 800 dC até, também, o final da Primeira Guerra Mundial — ou seja, 1.118 anos, mais de um milênio. Hitler esperava que seu Império, o “Terceiro Reich”, viesse a durar também mais de mil anos. Não chegou a durar sete anos.
[3] Refiro-me ao autor de Reformations: The Early Modern World, 1450-1650 (Yale University Press, New Haven, 2016), pp.165-166, tendo eu buscado maiores detalhes principalmente na Wikipedia. Conforme assinalado em outro artigo deste blog, “Reformar a Igreja ou Criar uma Nova” (https://reformation.space/2017/05/27/reformar-a-igreja-ou-criar-uma-nova/), Carlos Eire é uma pessoa curiosa. “Riggs Professor of Religious Studies” na Universidade de Yale, uma das mais conceituadas dos Estados Unidos, foi nascido em Cuba, no ano de 1950, foi uma das crianças envolvidas, em 1961, num translado promovido pelos Estados Unidos que removeu de Cuba cerca de 14.000 crianças, levando-as, sem seus pais, para os Estados Unidos, na chamada Operação Peter Pan. Carlos Eire nunca mais viu seu pai, embora tenha posteriormente reencontrado sua mãe, que conseguiu fugir para os Estados Unidos. [Vide, a esse respeito, https://en.wikipedia.org/wiki/Carlos_Eire e https://en.wikipedia.org/wiki/Operation_Peter_Pan].
[4] Christendom Destroyed: Europe, 1517-1648 (Viking, New York, 2014), p.13.
Em Salto, 29-30 de Maio de 2017
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