Reformar a Igreja ou Criar uma Nova?

É uma questão histórica interessante tentar determinar quando é que Martinho Lutero perdeu a esperança de reformar a Igreja Católica e concluiu que era necessário criar uma Igreja Nova – que ele, para seu crédito, nunca quis que se chamasse Igreja Luterana [1].

Alguns historiadores, especialmente católicos, acusam Lutero de ter, desde o início, tentado “destruir” (não reformar) a Igreja Católica, em virtude de um ódio irracional e obsessivo contra ela. Felipe Aquino, um leigo que produz uma obra histórica e doutrinária extremamente prolífica em defesa da Igreja Católica, em um site chamado Cléofas, e que tem vários livros publicados na área de História da Igreja, chega muito próximo de dizer isso [2].

Lyndal Roper, em livro recente, publicado neste ano de 2017, sugere que o ano de 1530 marca o ano em que Lutero definitivamente perdeu a esperança de reformar a Igreja Católica, vindo a se convencer de que o movimento que ele liderava iria se tornar, na realidade, uma Nova Igreja [3].

Dentro dessa visão, é forçoso reconhecer que Lutero, ao fixar suas 95 Teses na porta da Igreja da Universidade de Wittenberg, se é que ele fez de fato isso [4], não tinha a menor ideia do reboliço que estava por criar. Apesar de ter um temperamento complicado, chegado à rebeldia, e tendo sempre tomado decisões e agido no calor do momento, sem deixar as emoções esfriarem para dar lugar à ação refletida e racional, Lutero aparentemente imaginou que fosse capaz de mostrar o quão errada ela estava, teológica e moralmente, a uma igreja que não sabia o que estava fazendo com a venda de indulgências… Tudo parece indicar, portanto, que Lutero, embora de forma meio estabanada, não queria causar uma revolução, mas, sim, corrigir um desmando, contribuindo, dessa maneira, para a reforma de sua Igreja.

Alberto de Brandenburgo (vide a nota 3) enviou a cópia das 95 Teses, por sugestão de seus conselheiros, diretamente para a Cúria Romana – fazendo com que o Papado tomasse conhecimento do que o monge de Wittenberg estava pensando acerca das indulgências. Provavelmente o Papado não deu maior importância ao fato – mas também não descuidou dele, encarregando membros da Cúria de manter o caso sob observação. Foi nesse contexto que foram promovidos debates com Lutero em vários locais e com diversas representantes credenciados da Igreja Católica.

É nesse contexto que em 26/04/1518 Lutero participa de um debate em Heidelberg, contra Johannes Meyer Eck, de Ingolstadt, antigo amigo de Lutero. No debate, Lutero apresenta suas algumas outras teses, no mesmo sentido das anteriores, as chamadas “Teses de Heidelberg”. Como Lutero não foi convencido a admitir que estava errado e a se retratar, em Junho de 1518 foi intimado a ir a Roma, para se explicar — mas se negou a ir… Diante disso, o Príncipe Frederico III da Saxônia, chamdo de “O Sábio”, resolve interceder a favor de Lutero, que estava se tornando a estrela maior de sua recém criada (em 1502) Universidade, e pede que ele seja ouvido por um representante papal em Augsburgo, cidade alemã dentro dos domínios do Príncipe. O Papa Leão X concordou e designou o Cardeal Cajetano para a missão de conseguir, mais uma vez, que Lutero se retratasse, evitando problemas maiores. No mês de Outubro, ainda de 1518 (as coisas caminharam bastante rápido), Lutero se encontrou em Augsburgo com o Cardeal Cajetano, que exigiu a retratação das críticas por ele feitas à doutrina das Indulgências e ao Papado. Lutero mais uma vez se negou a retratar-se, apelando ao Papa e pedindo a convocação de um Concílio Geral para discutir e avaliar suas ideias… Não houve resposta. Em Junho de 1519, Lutero, com seu colega e superior na Universidade (posto que era o Reitor/Chanceler), Andreas Rudolf Bodenstein von Karlstadt, que tinha três doutorados (Teologia, Direito Canônico e Direito Civil), participa de mais um debate em Leipzig, contra Johannes Meyer Eck, de Ingolstadt, sem nenhum resultado diferente dos anteriores. Assim sendo, tendo esgotado sua paciência, o Papa Leão X baixou, em 15/06/1520, uma Bula, com o título Exsurge Domine, em que condena as ideias e os livros de Lutero e lhe dá sessenta dias para se retratar ou ser excomungado.

A resposta de Lutero é sentar-se e escrever três livrinhos dirigidos a audiências diferentes – mas em todos eles fazendo pesadas críticas à Igreja Católica e ao Papado. O primeiro deles, Carta à Nobreza Alemã, é dirigido aos nobres alemães – aos príncipes, duques, etc. que dominavam as diversas regiões que compunham um país ainda não unificado, e mostrava a eles a conveniência de apoia-lo. Aqui Lutero começou a bater na tecla nacionalista, que envolvia interesses territoriais, políticos e econômicos. O segundo livrinho, O Cativeiro Babilônico da Igreja, é dirigido mais a uma audiência teológica: aos seus colegas e superiores dentro da Igreja Católica. E o terceiro, A Liberdade do Homem Cristão, é mais dirigido ao que se convencionou chamar de homem comum e apela ao seu amor pela liberdade e ao seu ódio à tirania e à dominação. Parece que, a partir desses escritos, Lutero havia se convencido de que o seu caminho não tinha retorno. Ou ele se retratava, ou seria excomungado e, quem sabe, martirizado pela Igreja Católica, com o apoio do Imperador Carlos V, recém escolhido (e que tinha meros 19 anos).

Durante 1520, Girolamo Aneander, núncio Papal na Alemanha, não consegue publicar nos territórios daquele país a Bula em que o Papa condenava Lutero. Parece que o livrinho dirigido por Lutero aos nobres alemães começava a surtir efeito. Aneander só conseguiu publicar a Bula papal na Holanda!

Mas Lutero recebeu uma cópia dela e, em 10/12/1520, a queimou em praça pública, junto de uma cópia dos livros de Direito Canônico Romano. A guerra está declarada.

Mais uma vez, Frederico da Saxônia, que havia decidido que não iria deixar seu protegido ser excomungado e queimado em praça pública, interveio pedindo que Lutero fosse ouvido pelo novo Imperador, Carlos V, durante a Dieta de Worms, que iria se realizar em Abril de 1521, com a presença do próprio príncipe e dos demais nobres alemães. Ali um outro Johannes Eck, este de de Trier (não confundir com o outro, de Ingolstadt), agiu como promotor. A história é conhecida.  Lutero corajosamente se recusou a retratar-se, diante do Imperador, e foi condenado, agora politicamente, à pena de proscrição, dentro Sacro Império Romano. Lutero, se preso, depois de vencido o indulto que lhe havia sido dado pelo Imperador para que comparecesse à Dieta, poderia ser punido com morte na fogueira.

Mas o Príncipe Frederico interveio novamente e mandou sequestra-lo, para que não fosse preso pelo Imperador, a pedido do Papa Leão X. Frederico o escondeu no Castelo de Wartburgo, por mais de um ano (onde Lutero aproveitou para traduzir o Novo Testamento para o Alemão).

A posição pessoal de Lutero frente à Igreja Católica e frente ao Império estava, porém, basicamente caracterizada. Sua proscrição por parte do Sacro Império Romano o impedia de ir e vir livremente, exceto em locais em que o Príncipe Frederico (e, depois de sua morte, em 05/05/1525) o seu irmão, que assumiu o governo da Saxônia) pudesse garantir a sua segurança.

Sem a presença de Lutero, escondido em Wartburgo, as coisas saíram de controle em Wittenberg. Karlstadt começou a agir de forma bem mais radical do que Lutero achava conveniente, removendo imagens (tridimensionais e bidimensionais) das igrejas, celebrando a Missa em Alemão, ministrando a Eucaristia sem as vestes sacerdotais e oferecendo o pão e o vinho a todos (na prática Católica apenas o padre oficiante bebe o vinho – os fiéis só recebem o pão, na forma de hóstia), e, finalmente, casando-se… Lutero, que apesar de rebelde, em muitos aspectos, era extremamente conservador com qualquer coisa que fosse além de ideias, ficou chocado, e resolveu ir até Wittenberg, incógnito. Ali desentendeu-se com Karlstadt, abrindo uma ferida no relacionamento entre os dois que nunca veio a se curar, mas conseguiu impor alguma ordem na cidade, retornando rápido para o Castelo de Wartburgo.

Logo teve de sair de lá, por causa da inquietação dos camponeses, atiçada por Thomas Münzer, que se tornava cada vez mais revolucionário. Na revolta que eclodiu em 1525, Lutero assumiu seu conservadorismo, ficou do lado dos nobres, e recomendou que a revolta fosse combatida com a violência que fosse necessária – e muita violência foi necessária. Lutero nunca mais foi o mesmo, e nunca mais foi visto como o mesmo (exceto pelos nobres alemães), depois disso.

Em 1525, Lutero se casou – com uma freira, Katharina von Bora – chocando alguns de seus colegas e seguidores, mais conservadores do que ele.

Lutero, que já havia rompido com Karlstadt, em 1525 rompe com Erasmo, perdendo o apoio dos humanistas que ainda tinham alguma esperança de que ele pudesse conduzir a reforma da Igreja Católica em direção que os humanistas consideravam aceitável.

Em 1529 e 1530, em Espira, houve duas tentativas de conciliar Lutero e salvar a reforma da Igreja Católica.

A primeira, em 1529, tentou unir as forças que lutavam por reforma: Lutero, Melanchton, Zuínglio, Bucer. Não deu certo. A divergência sobre a Eucarista o impediu.

A segunda, em 1530, em Augusburgo, tentou reconciliar Lutero e as demais forças reformadoras (Zuínglio, Bucer, Oicolampádio, etc.) com os Católicos. Também não deu certo. Dessa tentativa Lutero só participou por interpostas pessoas, porque estando Augsburgo fora da Saxônia, Lutero corria o risco de ser preso se fosse até lá. Melanchton, chefiando uma delegação Wittenberguiana o representou. Mas o evento serviu para criar um severo desentendimento entre Lutero e seu lugar-tenente, Melanchton, que, na opinião de Lutero, fez concessões demais na produção de um texto-base para o acordo (que, rejeitado, acabou se tornando a Confissão Luterana de Augsburgo, de 1530).

Segundo Roper, foi depois desse encontro em Augsburgo que Lutero se convenceu de duas coisas:

  1. Não havia conciliação possível com os outros reformadores;
  2. Não havia conciliação possível dos reformadores, muito menos dele, com a Igreja Católica.

Foi a partir daí que Lutero se convenceu que deveria trabalhar para organizar uma Igreja Nova, que retivesse o essencial de suas ideias e das práticas que ele considerava essenciais. Começou a dedicar-se a elaborar textos educacionais (catecismos, por exemplo), ordens de culto, a escrever hinos, a elaborar roteiros para celebração do Batismo e da Eucaristia, bem como para a celebração de casamentos e realização de funerais – isto é passou a se envolver com coisas mais práticas que toda igreja precisa ter. Ele não sabia, mas tinha apenas mais 16 anos de vida.

NOTAS

[1] Lutero insistia para que seus seguidores fossem chamados de cristãos, não de luteranos. Disse ele: “O que é Lutero? O ensinamento não é meu. Nem fui eu crucificado por amor a ninguém. . . . Como então devo eu, um pobre e fedido zé-ninguém, imaginar que as pessoas possam chamar os filhos de Cristo pelo meu miserável nome? . . . Eu simplesmente ensinei, preguei, e escrevi a Palavra de Deus; além disso, não fiz nada. E enquanto eu dormia, ou bebia a cerveja de Wittenberg com meus amigos . . . a Palavra enfraqueceu de tal forma o Papado que nenhum príncipe ou imperador jamais foi capaz de causar dano equivalente a ele. Eu não fiz nada; a Palavra fez tudo.” Citação apud Alec Ryrie, Protestants: The Faith that Made the Modern World (Viking, New York, 2017), pp. 32-33.

[2] Vide, por exemplo, seu artigo “A Reforma Luterana”, em http://cleofas.com.br/a-reforma-luterana/. Esse artigo de certo modo resume, em formato de “Perguntas” e “Respostas” de seu livro Para Entender a Reforma Protestante (Editora Cléofas, Lorena, 2016). Protestantes ou Evangélicos fariam bem em ter esse livro (que custa R$ 25,00) para ter uma visão diferente, do ponto de vista católico, das Reformas Protestantes do Século 16, em especial da Reforma Luterana. Aquino vê Lutero como um revolucionário meio desequilibrado emocionalmente, que foi teleguiado pelos príncipes germânicos interessados em se livrar da Igreja Católica para poder confiscar suas propriedades e ficar com suas rendas. Por isso, afirma, sem hesitar e sem maiores qualificações, o seguinte: “A Reforma Protestante não foi realmente uma reforma.  Foi antes uma revolução. Ela tirou reinos inteiros à Igreja Católica, e introduziu ideias inteiramente novas sobre as relações religiosas entre os cristãos e Cristo.” O trecho vem do artigo-entrevista mencionado e dá a entender que a motivação maior para a Reforma Luterana foi territorial, política e econômica. Um outro livro, este bem mais sério e de peso, que analisa Lutero e a Reforma Luterana do ponto de vista católico (mas na perspectiva da Roma do Século 16), é Luther der Ketzer: Rom und die Reformation (C. H. Beck, München, 2016, 3a ed., revista, 2017). Os autores que escrevem sobre a Reforma Luterana da perspectiva católica tendem a ver em Lutero um herege obstinado, e não um reformador bem intencionado (embora, sem dúvida, obstinado).

[3] Vide Lyndal Roper, Martin Luther: Renegade and Prophet (Random House, New York, 2017), capítulo 16 (“Consolidation”), pp.333-353.

[4] Boa parte dos autores mais recentes, sem negar, de forma alguma, que Lutero tenha escrito as 95 Teses, e que as tenha começado a divulgar em 31 de Outubro de 1517, acha pouco provável que ele tenha feito essa divulgação basicamente pregando o seu texto da porta da Igreja – embora poucos estejam dispostos a contestar a possibilidade de que isso tenha acontecido, pois colocar teses em debate fixando-as nos murais da Universidade, ou, sendo as teses religiosas ou teológicas, nas portas, nas janelas, ou nas paredes da igreja fosse algo comum. Uma coisa parece certa: Lutero enviou uma cópia de suas teses para o arcebispo Alberto de Brandenburgo (1490-1545), que foi Arcebispo de Magdeburgo de 1513-1545 e de Mainz de 1514-1545. Alberto é uma figura importante e curiosa na história da reforma luterana. Como arcebispo dessas duas cidades ele tinha jurisdição sobre a cidade de Wittenberg – sendo, portanto, o arcebispo ao qual Lutero estava jurisdicionado. Isso explica por que ele teria enviado suas teses exatamente para Alberto. Mas a curiosidade vem do fato de que Alberto vinha de uma família famosa, obteve, numa idade muito tenra o arcebispado de Magdeburgo (em 1513), quando tinha 23 anos, e, vagando o arcebispado de Mainz, uma cidade muito maior e mais importante, ele pleiteou ocupa-lo – sem, porém, se dispor a abrir mão do arcebispado que já ocupava. Uma só pessoa ocupar dois arcebispados era incomum. Mas Igreja Católica nunca foi intransigente na violação de uma prática, se o interessado no assunto estivesse disposto a pagar… e foi isso que Alberto fez: obteve um enorme empréstimo junto aos famosos banqueiros da Casa de Fugger, e literalmente comprou o arcebispado de Mainz. Como parte do negócio, foi autorizado a vender indulgências na região. As indulgências contra as quais Lutero protestou em 1517, portanto, embora fossem justificadas oficialmente pela necessidade de recursos para a construção de uma nova basílica em Roma, tinham parte da receita que era auferida nos territórios sob responsabilidade de Alberto retida por ele – isso oficialmente, não por debaixo do pano. Lutero, ao protestar contra as indulgências em documento que ele enviou antes de tudo ao arcebispo envolvido, demonstrou audácia e coragem – ou, talvez, extrema ingenuidade. Lutero era sete anos mais velho que o arcebispo e, sendo monge, doutor, e professor de teologia na universidade, pode ter imaginado que o arcebispo não estava percebendo a imoralidade da venda de indulgências em si, e, mais ainda, da retenção de parte da receita para pagar o empréstimo que havia feito. Essa história é muito bem contada no magnífico (e enorme – quase 900 páginas) livro de Carlos M. N. Eire, Reformations: The Early Modern World, 1450-1650 (Yale University Press, New Haven, 2016), na seção “From Scholar to Rebel”, que faz parte do capítulo 7, “From Student to Monk”, pp.145-157. (Carlos Eire é também uma pessoa curiosa. “Riggs Professor of Religious Studies” na Universidade de Yale, uma das mais conceituadas dos Estados Unidos, foi nascido em Cuba, no ano de 1950, foi uma das crianças envolvidas, em 1961, num translado promovido pelos Estados Unidos que removeu de Cuba cerca de 14.000 crianças, levando-as, sem seus pais, para os Estados Unidos, na chamada Operação Peter Pan. Carlos Eire nunca mais viu seu pai, embora tenha posteriormente reencontrado sua mãe, que conseguiu fugir para os Estados Unidos. Vide, a esse respeito, https://en.wikipedia.org/wiki/Carlos_Eire e https://en.wikipedia.org/wiki/Operation_Peter_Pan.)

Em Salto, 27 de Maio de 2017; revisto em 30 de Maio de 2017.

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