[NOTA: Advirto o leitor que este artigo é mais longo e, na metade final, procura tirar lições, para o presente, de algo que Lutero introduziu no pensamento ocidental, especialmente, no pensamento teológico ocidental, no Século 16. Meu estilo, da metade para o fim, se torna mais provocativo, quase normativo, ao falar sobre a aplicação do princípio da desintermediação à Educação – e mesmo à religião – nos dias atuais. Lutero lançou a ideia – mas não a aplicou com consistência e de forma coerente. As inovações que ele introduziu na educação (que serão discutidas em outro artigo) não se beneficiaram de seu belíssimo insight.]
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Como assinalei em outro artigo publicado neste blog, “A ‘Ideia Perigosa’ de Lutero”, cujo título depende do título de um livro de Alister E. McGrath, Martinho Lutero, ao defender a tese de que todo cristão é um sacerdote, tese que ele rotulou de “O Sacerdócio Universal dos Crentes”, foi obrigado a atribuir ao crente funções que, na Igreja Católica eram privativas do sacerdote. É verdade, como indico, de passagem, no artigo “Somos Nós Tão Reformados Quanto Devemos?” que Lutero (bem como nenhum dos demais reformadores ditos “magisteriais”) não foi muito coerente na aplicação dessa tese. Se tivesse sido, os Protestantes (pelo menos os Luteranos) teriam atribuído a leigos, sem formação teológica especializada, e sem “ordenação” (um resquício da Igreja Católica), funções como pregar, ensinar, ministrar os sacramentos (Batismo e Santa Ceia), abençoar casamentos, realizar cerimônias fúnebres, etc. É verdade que, na ausência de um “pastor ordenado”, as várias igrejas protestantes históricas admitem, atualmente, que um leigo realize essas funções. Mas, em condições normais, elas são consideradas privativas do pastor.
É curioso que a Igreja Católica reconhecia e defendia a existência de sete sacramentos:
- Batismo
- Confirmação
- Eucaristia (Missa / Ceia)
- Confissão / Penitência
- Unção de Enfermos
- Matrimônio
- Ordenação
Lutero só manteve, na Reforma que realizou e defendeu, dois desses sacramentos: Batismo e Eucaristia. E esses dois que ele manteve lhe causaram mais problemas e dissabores do que todo o resto…
Ao aceitar o Batismo, mas não a Confirmação, como sacramento, Lutero se viu levado a aceitar, como os Católicos faziam, o Batismo de Crianças. Mas os Católicos o aceitavam porque, mais adiante, havia um outro sacramento, o da Confirmação, em que o adolescente, tendo atingido a “Idade da Razão”, e estando pronto para realizar sua “Primeira Comunhão” (sua primeira participação na Eucaristia), era confirmado. Ficando só com o Batismo, e aceitando o Batismo de Crianças, Lutero teve de enfrentar a crítica dos chamados Anabatistas, que acreditavam (com excelente base bíblica) que só deve ser batizado quem, ouvindo a pregação do Evangelho, reconhece que é pecador, acredita que Jesus morreu na cruz para perdoar-lhe os pecados, pede, por conseguinte, perdão para eles, e, só então, é batizado – processo que nenhuma criança pequena é capaz de atravessar. Por isso, os Anabatistas “rebatizavam” convertidos que já haviam sido batizados quando crianças, vindo a receber esse nome por causa dessa prática, pois “Anabatista” quer dizer “Rebatizado” ou “Rebatizador”. (Na verdade, o nome não foram os Anabatistas que escolheram: o nome lhes foi atribuído pejorativamente – de forma inadequada, porque, não reconhecendo a validade do Batismo de Crianças, o que eles faziam era, na sua visão, batizar pela primeira vez um ser humano consciente do que estava fazendo.)
Quanto à Santa Ceia, nenhuma outra doutrina causou tanto problema e dissabor para Lutero. Sua interpretação do texto bíblico era literalista – embora não chegasse a adotar a doutrina da “transubstanciação” católica. Ele achava que, durante a Eucaristia, o pão e o vinho passavam a ser realmente o corpo e o sangue de Jesus Cristo, havendo, neles, portanto, a “presença real” de Jesus Cristo. Nenhum dos outros reformadores magisteriais (Zuínglio, Calvino, etc.) aceitou essa interpretação, e essa discordância impediu que as diversas variantes juntassem suas forças para combater a Igreja Católica.
Mas voltemos à questão que é tema deste artigo: a desintermediação.
A Igreja Católica aceitava uma doutrina antiga, oriunda de um dito de São Ciprião de Cartago, bispo cristão do terceiro século, que afirmava que Extra ecclesiam nulla salus – “Fora da Igreja não há salvação”.
Para justificar essa doutrina de que não é possível chegar à salvação sem passar pela Igreja, e tornar essa doutrina operacional, a Igreja Católica criou um processo – focado nos Sacramentos – que lhe permitiria ficar em total controle do processo que envolvia a salvação das pessoas.
A primeira grande questão teológica que o monge Martinho Lutero enfrentou, depois de ter concluído seu Doutorado em Teologia (1512), e ao iniciar sua carreira de Professor de Teologia, na Universidade de Wittenberg, foi essa questão que podemos chamar de soteriológica: a questão da salvação. O que devo fazer para ser salvo?
Essa mesma questão já havia sido colocada no Novo Testamento: “O que hei de fazer para herdar a vida eterna?” (Mt.19:16; Mc.10:17; Lc.18:18), pergunta a Jesus um jovem interlocutor. A resposta que Jesus deu ao jovem que fez a pergunta foi bem diferente da resposta que a Igreja Católica a que Lutero servia dava no final da Idade Média. A resposta de Jesus, segundo narrada nos três Evangelhos Sinóticos, foi uma resposta em dois tempos:
- Guarde (cumpra) os mandamentos
- Venda os seus bens, dê o dinheiro aos pobres, venha e siga-me
No final da Idade Média, porém, a Igreja Católica já havia construído o sistema que a tornava indispensável para a salvação – centrado nos sete sacramentos. Os sacramentos eram considerados os veículos através dos quais Deus concedia sua graça aos humanos (eles eram “meios de graça”).
Ao nascer, a criança precisava ser batizada (Sacramento do Batismo); quando chegava à idade do entendimento, precisava ser confirmada (Sacramento da Confirmação); a seguir, precisava ser induzida no coletivo (a igreja) através de sua primeira comunhão, e, subsequentemente, através da comunhão regular durante a Missa (Sacramento da Eucaristia); para participar da comunhão, semanal, mensal ou anualmente, a pessoa precisava confessar seus pecados e cumprir as penitências impostas para que recebesse o perdão (Sacramento da Confissão e Penitência); quando adoecia, precisava receber uma unção com santos óleos, em especial se a doença pudesse representar risco à vida (Sacramento da Unção, que inclui o chamado Sacramento da Extrema Unção); quando entrasse no serviço da igreja, ela o faria como leiga ou como sacerdote. Se leiga, ela iria quase que inevitavelmente se casar, sendo necessário, nesse caso, submeter-se ao Sacramento do Matrimônio. Se sacerdote, ela, para fazer parte do clero, teria de se submeter ao Sacramento da Ordenação. Esses dois últimos sacramentos, portanto, Matrimônio e Ordenação, eram mutuamente exclusivos. De qualquer modo, leiga ou não, a pessoa fatalmente iria morrer, e, antes de morrer, teria de receber o Sacramento da Extrema Unção, que lhe garantiria um caminho aplainado para o Céu (via o Purgatório, onde pagaria seus últimos pecados). Assim, a Igreja Católica era uma “dispensadora de graças” ao fiel, e ela concedia sua graça ao fiel, através dos sacramentos, do seu nascimento à sua morte. Como os sacramentos precisavam ser ministrados pelo clero, o fiel ficava preso à Igreja durante toda a sua vida. Era assim que era salvo. Por isso que se dizia que fora da igreja não há salvação.
Lutero se achava um monge bastante sério, disciplinado, cumpridor de seus deveres. Fazia tudo o que o código moral da igreja determinava e o código disciplinar de sua ordem (a dos agostinianos) prescrevia. Participava diariamente da missa, para tanto se confessando e cumprindo as penitências determinadas. Confessava os menores pecadilhos a ponto de um dia seu confessor dizer a ele que, se quisesse ficar se confessando toda hora, que saísse e cometesse algum pecado sério, como assassinato, roubo, fornicação, etc. Lutero se impunha mais penitências do que as que o confessor determinava: açoitava-se, dormia pelado numa pedra fria no Inverno, etc. E, no entanto, não conseguia se convencer de que havia feito o suficiente, não tinha a sensação de que estava salvo.
O “estalo mental” de Lutero aconteceu quando, um dia, lendo a Epístola de Paulo aos Romanos, se deu conta de que o ser humano se torna justo, ou é justificado, pela sua fé – fé no fato de que tudo o que precisava ser feito para que o ser humano fosse salvo Jesus já havia feito por ele na cruz. Ou seja: o ser humano não precisa fazer mais nada para ser salvo, só ter fé de que o sacrifício de Cristo na cruz era suficiente para justifica-lo, para que fosse considerado justo.
Mas Lutero, ao ter esse estalo, não estava totalmente satisfeito ainda. Será, continuou, que a fé que me salva é uma obra minha, uma realização minha, um ato meu – e se for, será que eu consigo produzir em mim mesmo essa fé? E chegou à conclusão que não, ele não era capaz de gerar essa fé em si próprio: a fé que salva também é dada ao ser humano por Deus – é um dom que Deus gratuitamente concede ao pecador, sem que ele precise fazer nada em troca. Assim, concluiu Lutero, a salvação é verdadeiramente pela graça (Sola Gratia) – e ela acontece mediante a fé (Sola Fide), mas a fé, como apropriação da graça, também não é ação humana: inclusive ela é ação divina!
Essa conclusão deixou Lutero aliviado – tirou-lhe um peso das costas… Mas acabou por criar-lhe outros problemas.
Se a fé é um dom gratuito de Deus, sem que o ser humano possa fazer qualquer coisa que seja para merecê-la, por que alguns recebem esse dom da fé e outros não? A resposta a que ele chegou foi simples: porque Deus assim escolhe e decide. (Aqui entra a penosa questão da predestinação que vai ficar ainda mais difícil na obra de Calvino e de seus seguidores).
Enfim: a resposta que Lutero encontrou para a questão “O que hei de fazer para herdar a vida eterna?” ou “O que devo fazer para ser salvo?” foi uma resposta libertadora: NADA, absolutamente NADA. Nada porque tudo já foi feito por Cristo e porque, de qualquer modo, nada poderia ser feito por nós mesmos, dada a nossa natureza humana totalmente contaminada pelo pecado original. Assim, não é necessário cumprir a lei, não é necessário buscar a perfeição, não é necessário nem mesmo vender o que temos para dar o dinheiro aos pobres. Nem a nossa própria fé é decidida por nós. Sem qualquer escolha ou decisão nossa, estamos salvos. (Se formos escolhidos por Deus para ser recipientes do dom da fé, é verdade – mas como nem isso depende de nós – “Why worry?” E se não formos escolhidos, também não há o que possamos fazer, de modo que, aqui também, “Why worry?”).
Assim, estamos livres, segundo Lutero, da necessidade de mostrar serviço. Estamos livres da lei, da necessidade da perfeição – e da própria igreja! Porque nossa salvação independe da igreja, dos sacramentos, da missa, do clero, dos bispos, do papa. Ela é algo que se efetua entre Deus e cada indivíduo – por causa daquilo que Deus já fez em Cristo. Nem a aceitação daquilo que Deus fez por nós em Cristo é decisão nossa.
(Lutero não era um “decisionista” ou um “conversionista”, como dizem alguns. Na verdade, ele chegou próximo de ser um “antinomianista”… Na verdade, ele chegou a sugerir que o ser humano podia pecar à vontade, porque, se fosse eleito, já estava perdoado, e, se não fosse eleito, já iria ser condenado de qualquer maneira…)
O importante de todo esse desenvolvimento teológico na mente de Lutero é que ele acabou por levar à doutrina do Sacerdócio Universal do Crente. O crente não precisa de intermediários para nada. Se ele quiser falar com Deus, para pedir ou agradecer algo, não precisa de buscar a mediação de um santo ou da Virgem – ele fala direto, porque Jesus já agiu como seu Mediador Maior.
Assim, está teologicamente correto Gilberto Gil quando disse “Se eu quiser falar com Deus tenho que ficar a sós” [Gilberto Gil, em sua canção “Se eu quiser falar com Deus”, de 1980].
Mas, durante boa parte da história do Cristianismo, não foi bem assim como disse Gilberto Gil, nosso ex-Ministro da Cultura. Para falar com Deus, o fiel não podia ficar a sós: tinha de encontrar um intermediário. Na verdade, o intermediário é quem falava com Deus por ele. Padres, santos, a Virgem Maria, todos eles eram credenciados pela “Santa Madre Igreja” como intermediários no relacionamento e na comunicação do fiel com Deus – algo parecido com despachantes espirituais. E todos eles eram abrigados dentro da mencionada Madre Igreja, fora da qual, como ela mesma alegava, não haveria salvação. Ou seja: nada se resolvia, no plano espiritual, sem a intermediação dos padres e da igreja.
Na verdade, nem mesmo o livro que todos consideravam a Palavra de Deus os fiéis podiam ler sozinhos: o texto das Escrituras, segundo a Igreja, era de difícil interpretação, continha uma série de dificuldades, aparentes contradições mesmo, e estava recheado de várias histórias pouco edificantes sobre alguns dos chamados heróis da fé que precisavam ser bem interpretadas antes de chegar aos olhos ou ouvidos dos crentes… Assim, para a igreja, seria melhor que o fiel não lesse o livro diretamente e dependesse do sacerdote para selecionar as passagens certas, interpreta-las, e entrega-las ao fiel já mastigadas e pré-digeridas, como se fosse. Por isso, quando Lutero resolveu traduzir a Bíblia (primeiro o Novo Testamento) para a língua do povo (no caso, o Alemão), a Igreja Católica Apostólica Romana não gostou nem um pouquinho. . . Quem viu o filme Lutero, com Joseph Fiennes, terá notado isso.
Por isso, para a igreja da Idade Média era ótimo que o fiel nem soubesse ler, para não ser tentado a ler as Escrituras por si próprio (ou, pior ainda, os escritos profanos). O fato de que os livros, naquela época, eram manuscritos, e, portanto, de difícil, lenta e cara produção, era, para a igreja, algo bom e positivo. Mesmo exemplares da Bíblia existiam em pequeníssima quantidade e, por isso, eram bem guardados em igrejas e mosteiros, raramente chegando às mãos dos fiéis (que, aliás, em sua maioria, nem sabiam ler, caso também de alguns religiosos. Vide o livro O Nome da Rosa, de Umberto Eco e o filme inspirado nele).
Nada disso é novidade. O que estou dizendo sobre a igreja da Idade Média é fato conhecido e notório. Está até em filmes bem conhecidos.
O importante é que Lutero procurou acabar com essa intermediação de múltiplos níveis. Só por isso o que ele fez já deveria ser chamado de Revolução Protestante, em vez de apenas Reforma, porque o que fez foi muito além de mera reforma: foi subversão, mesmo, de um sistema de mediação (e, portanto, de dependência, de “encurralamento”, muito bem arranjadinho). Quem queria fazer reforma era Erasmo de Roterdam, que, apesar de criticar a igreja, não queria ficar sem sua suposta proteção…
A doutrina protestante do “Sacerdócio Universal dos Crentes” afirma que todo crente é, na verdade, um sacerdote, e, como tal, tem acesso direto a Deus, sem intermediação de outros sacerdotes, ou dos santos, ou da Santa (e perpétua) Virgem… A doutrina de que os santos e a Virgem Maria são intermediários, que intercederiam por nós, também foi descartada. Na doutrina evangélica, os crentes, quando oram, estão a sós com Deus (como sugere Gilberto Gil), sem necessidade da presença de intermediários e intercessores.
E, como vimos, no artigo “A ‘Ideia Perigosa’ de Lutero, neste blog, a Reforma Protestante foi além: deu a cada crente a liberdade e o direito de interpretar a Bíblia como lhe indicar a sua consciência, iluminada pela sua razão (e, segundo Calvino, também pelo Espírito Santo).
Por conseguinte, não há motivo para que o crente não deva ler a Bíblia e interpreta-la desassistido dessa e de qualquer outra mediação. Por isso, Lutero traduziu a Bíblia, que antes existia apenas em língua que a maior parte do povo não falava, o Latim, para o Alemão, a língua que o povo falava na sua região. E criou escolas ao lado das igrejas para que o povo pudesse aprender a ler, exatamente para lê-la.
Dali em diante, pelo menos nas partes do mundo em que o Protestantismo vicejou, o fiel precisava aprender a ler para ler diretamente o livro que ele considerava a palavra de Deus e para falar diretamente com Deus em oração. Por isso, a oração protestante não é reza, coisa fixada, decorada, repetida mecanicamente de cor: é conversa mesmo, do crente com seu pai, na qual o crente conta coisas, se confessa, pede coisas, agradece por coisas… Isso explica porque no Protestantismo não há confissão de pecados do fiel para o sacerdote: o fiel se confessa diretamente para Deus.
O Protestantismo deve isso a Lutero – mesmo que Lutero não tenha sido totalmente coerente na aplicação de suas ideias. Entre outras incoerências, ele achava a confissão (dirigida não diretamente a Deus, mas a um outro ser humano) e a penitência um processo saudável, e ficou em dúvida se, quem sabe, não deveria ter considerado a prática da Confissão e da Penitência um terceiro Sacramento…
O importante, porém, é que Lutero introduziu, com sua reforma, um processo gigantesco de desintermediação na interação e comunicação com Deus. Foram dispensados os intermediários, os despachantes espirituais.
Do tempo de Lutero para cá esse processo de desintermediação vem sendo aplicado a outras áreas da vida humana.
Ou vejamos. Termino este artigo com uma aplicação… Passemos da Idade Média para o presente, da Alemanha do Século 16 para o Brasil do Século 21…
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Houve época no Brasil em que um despachante era indispensável para qualquer ação que envolvesse interação e comunicação entre o cidadão e os órgãos e as agências governamentais. Para comprar, transferir, e licenciar um veículo, era preciso um despachante. Para tirar, renovar ou recuperar a carteira de motorista, também. Para tirar uma carteira de identidade, passaporte, ou carteira de trabalho, idem. Para quase todo relacionamento do cidadão com os governos (federal, estaduais, municipais), ele precisava de um intermediário.
Hoje é possível fazer todas essas coisas e tirar todos esses documentos sem necessidade de despachante ou de outro intermediário qualquer. O usuário final pode ir diretamente aos órgãos ou às agências governamentais, que, em alguns estados, como São Paulo, estão todos reunidos em um mesmo espaço (Poupa Tempo, para os paulistas). Alternativamente, pode fazer várias dessas coisas diretamente pela internet, sem mesmo sair de casa.
Como os sacerdotes católicos na época da Reforma Protestante, os despachantes estão em baixa, hoje, nesse enorme processo de desintermediação na interação e comunicação do cidadão com os seus governos.
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Mesmo na interação e comunicação das pessoas com instituições privadas tem havido uma tendência clara na direção da desintermediação.
Em bancos, o próprio correntista faz, hoje, quase tudo, sem precisar recorrer a um intermediário: gerente, caixa ou atendente. Os caixas eletrônicos são amplamente usados e a Internet permite aos correntistas fazer boa parte de suas transações a partir de sua própria casa ou do seu trabalho, sem precisar se locomover. Isso é desintermediação.
Nos restaurantes, o self-service impera – pelo menos na hora do almoço. O garçom é quase totalmente desnecessário. Isso é desintermediação.
Nos postos de gasolina dos Estados Unidos, da Europa e de outros países desenvolvidos, o próprio freguês se serve e paga com cartão de crédito. Não há atendentes que operam como intermediários. Se for preciso checar a pressão dos pneus, é o próprio dono do carro que faz isso (aqui no Brasil, também). Isso é desintermediação.
Nos aeroportos, os passageiros fazem seu próprio check in, despacham suas malas, recebem seus cartões de embarque, e embarcam, dispensando uma série de intermediários. Isso é desintermediação.
Nos Estados Unidos, na Europa e em outros países desenvolvidos veem-se, nos supermercados, “caixas sem caixa”, isto é, terminais de caixa não operados por empregados do estabelecimento, nos quais os fregueses passam os produtos, pagam por eles com cartão de crédito, colocam-nos numa sacola e vão-se embora. Isso é desintermediação.
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Os exemplos podem ser acrescentados de forma quase que ilimitada. Em muitos deles, especialmente os mais recentes, a revolução da desintermediação tem acontecido e continua a acontecer em decorrência da evolução tecnológica.
Os de mais de 60 anos vão se lembrar da época em que, para fazer um telefonema interurbano, ou até mesmo local, era preciso recorrer a uma telefonista. Lembro-me de que, na Cia Swift do Brasil, em Utinga, onde trabalhei no fim da década de 1950 e início da década de 60, mesmo dentro do escritório era preciso recorrer à telefonista para falar com alguém em outra sala ou em outra mesa. Os telefones não tinham mecanismo de discagem (disco, teclado, etc.). A tecnologia mudou tudo isso. Hoje falamos com pessoas do outro lado do mundo, usando telefone fixo, celular, ou o próprio computador, sem precisar da intermediação de nenhuma telefonista.
(Li certa vez um artigo que mencionava o fato de que, no início do século XX, quando a telefonia – ainda manual – se popularizava nos Estados Unidos, um analista disse que, se a curva de crescimento se mantivesse, dentro de 50 anos, a contar daquela data, toda mulher americana teria de ser telefonista. Errou cheio – e feio. Não levou em conta a evolução da tecnologia. E, não sei por que cargas d’água, não imaginou que homens pudessem vir a exercer a função, como hoje exercem a função de comissários de bordo ou atendentes de voo, antes prerrogativa das aeromoças…).
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Agora, a grande questão, que justifica a atenção de professores e outros educadores – e do público em geral.
E o acesso à educação, à aprendizagem? Vai continuar a ser mediado por professores, dentro de uma instituição, a escola? Ou será que teremos a desintermediação também no acesso à educação e à aprendizagem?
Há gente que, tentando parecer atualizada, diz que o professor não ensina, apenas medeia… Irônico que se diga isso justamente numa época em que os intermediadores estão desaparecendo!
É forçoso reconhecer que, em grande medida, o acesso à educação e à aprendizagem já está desintermediado. Pela Internet, temos acesso direto não só a todo e qualquer tipo de informação, como também a uma ampla e variada gama de pessoas com quem podemos interagir e nos comunicar, para solucionar dúvidas, buscar orientação, discutir e debater as questões que nos são importantes, dispensando a intermediação do professor e da escola.
Facebook, a rede social de mais de dois bilhões de usuários – quase um terço da população do mundo, provavelmente, em seu conjunto, a parcela que detém mais informações, conhecimentos e competências – não vai deixar de afetar a educação e as nossas formas de aceder à informação e nos comunicar, vale dizer, de aprender. Ali temos acesso a informações de todos os tipos, ali encontramos pessoas com enorme cabedal de informações, conhecimentos e competências, em áreas afins aos nossos interesses, ali podemos conversar diretamente com especialistas em quase qualquer assunto.
Na verdade, ali podemos descobrir propostas novas e ali podemos expressar e testar nossas ideias e reflexões, receber críticas, rebatê-las. Facebook é um micromundo no espaço virtual. Ali impera a desintermediação no acesso à informação, à comunicação, à educação, à aprendizagem. Ali podem ser criados, com extrema facilidade, inúmeros ambientes virtuais de aprendizagem colaborativa, com configurações que se adaptem aos interesses e aos estilos de aprendizagem de cada um. Temos, ali, todos nós, múltiplas possibilidades de acesso personalizado à educação e à aprendizagem. Uma alternativa à escola padronizada e massificada em que um só tamanho veste todo mundo.
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Li, recentemente, um livro interessante, chamado The Church of Facebook: How the Hyperconnected Are Redefining Community (A Igreja de Facebook: Como os Hiperconectados Estão Redefinindo Comunidade), de Jesse Rice.
Eis o que diz a última capa do livro (em minha tradução):
“O mundo está ficando menor, um perfil de cada vez.
Uma revolução está acontecendo diante de nossos olhos. Um movimento de amplitude mundial, ancorado em redes wi-fi, está mudando a forma como interagimos e nos relacionamos com os outros. É uma mudança sísmica que está redefinindo a ideia de comunidade. Todo dia milhões de pessoas se conectam umas às outras através de redes sociais online, sites que nos permitem acompanhar as andanças, atividades e pensamentos de nossos amigos e nos ajudam a definir as formas como eles nos veem.
Mas, por mais que perfis pessoais possam se tornar reveladores, eles apontam para além de si próprios, para realidades e verdades ainda mais amplas e profundas. Eles colocam a nu nosso desejo de identidade e de comunidade, nossa fome por sermos conhecidos, identificados e reconhecidos como parte de um grupo significativo.
Jesse Rice acredita que o Facebook nos oferece a oportunidade de olhar, com profundidade, para nossas necessidades mais básicas e fundamentais. Acompanhe Jesse enquanto ele explora o enredamento social e seu impacto sobre a cultura – e sobre a igreja, que é parte da cultura. Cheio de perspectivas inovadoras e de questões provocadoras, A Igreja de Facebook nos encoraja a perseguir relacionamentos autênticos, com Deus e com aqueles que nos rodeiam.”
É isso. Muita gente considerava a igreja e as forças armadas as instituições mais conservadoras da sociedade. Mas aí está um “pastor de música e adoração” (evidentemente protestante, não católico) mostrando que alguns segmentos da igreja estão atentos a inovações. Afinal de contas, a igreja não quer que os fiéis vivam a religião apenas nos domingos (muito menos apenas na Páscoa e no Natal): quer que eles a vivam o tempo todo, 24 horas por dia, sete dias por semana. Quer que a religião os envolva enquanto trabalham e enquanto se divertem. Anytime, Anywhere Worship… (Culto a Qualquer Momento e em Qualquer Lugar…). Sem sacerdotes, sem pastores… Na verdade, em boa doutrina da Reforma, o sacerdote e o pastor estão onde está o crente… A desintermediação da Reforma em roupagem do século 20, agora viabilizada pela tecnologia.
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Voltemos à Educação.
Quando acontecer o que imagino que vá acontecer com o Facebook na área da educação, por que a gente vai precisar de escolas e de professores? Só para guardar e custodiar crianças pequenas? Será que as escolas vão se tornar grandes creches e os professores os seus atendentes?
Será que a escola vai ganhar da igreja como instituição mais conservadora da sociedade? (Os militares já são super high tech).
Alguém pode tentar responder argumentando que as escolas, além de responsáveis (através dos professores) por ensinar, são também responsáveis (através da direção e coordenação) por elaborar o currículo, isto é, fixar as expectativas de aprendizagem que elas (pretendendo falar pela sociedade) têm para os seus alunos. E perguntarão quem fará isso, se as escolas deixarem de existir, ou se as escolas se tornarem, não ambientes de aprendizagem, mas ambientes de mera custódia (e alimentação – a merenda parece ter se tornado uma ação pegagógica essencial…).
A resposta é relativamente fácil.
A maior parte do que a escola espera que seus alunos aprendam é totalmente inútil para a vida, o trabalho e o exercício da cidadania de seus alunos em uma sociedade aberta e democrática na qual a tecnologia é ubíqua. Para começar, a escola afirma preparar cidadãos para o exercício da democracia em um ambiente do qual a democracia e a liberdade passam longe. Os alunos não têm liberdade para escolher o que aprender, não participam da governança da escola, não decidem nada nem mesmo a respeito de suas próprias vidas na escola. Leiam o artigo “Pequena Escola de Liberdade”, escrito por Ricardo Semler, a pessoa que concebeu, criou e até hoje mantém as Escolas Lumiar. Depois, verifiquem se a escola democrática descrita ali se parece com as escolas que vocês frequentaram e com as outras escolas que vocês vieram a conhecer depois…
Por que isso acontece?
Todos sabemos que cada ser humano é único e irrepetível (com a possível exceção de gêmeos idênticos). Temos conjuntos de características cognitivas e não cognitivas únicos. Cada um de nós tem sua personalidade, seu temperamento, seus talentos naturais, seus interesses, seu jeito próprio de ser, de pensar, de fazer as coisas, de aprender. No devido momento, cada um de nós faz suas escolhas, com base em seus valores, e define seu projeto de vida. A ideia de que exista um amplo conjunto de coisas que todos precisamos saber ou saber fazer é um despropósito. Sim, existe um pequeno conjunto, mas esse conjunto é mínimo. Talvez ele se exaura em algo como a seguinte lista do que todos nós precisamos saber numa sociedade como a nossa:
- Entender a língua materna e a falar bem, para poder ouvir e entender os outros e expressar o que pensamos, sentimos, desejamos, e escolhemos, de modo a poder interagir e nos comunicar com os nossos semelhantes;
- Ler e escrever na língua materna, para poder fazer essas mesmas coisas por escrito, deixando-as registradas, para nós mesmos e para a posteridade;
- Argumentar e criticar argumentos, para poder debater com os nossos semelhantes questões de interesse comum;
- Entender raciocínios quantitativos elementares para poder transacionar em uma sociedade cuja economia depende do dinheiro;
- Respeitar os direitos básicos de terceiros e seguir certas regras básicas de convivência sem as quais retroagimos à barbárie.
(Este é o básico. Há, nessa lista, embora curta demais para alguns, mais do que havia no Trivium Medieval. Menos, em muitos casos, é mais… ).
Tudo mais que precisamos aprender ou aprender a fazer depende dos talentos naturais, dos interesses, das escolhas, dos valores e dos projetos de vida de cada um. Não é básico, é específico. Um escritor de ficção não precisa conhecer quase nenhuma matemática. Um médico não precisa conhecer quase nenhuma literatura. Um advogado não precisa conhecer quase nenhuma física. Um pastor, um padre e um rabino não precisam conhecer quase nenhuma química. Um poeta não precisa conhecer quase nenhuma estatística.
De qualquer maneira, mesmo que minha proposta seja vista como exageradamente minimalista, acredito que não seria difícil chegar a um acordo sobre o mínimo básico que todos deveriam saber e saber fazer. E saberíamos determinar, melhor do que a escola, quando alguém chegou ao nível de proficiência desejável em cada um desses aprenderes. As empresas e as demais instituições da nossa sociedade selecionam bons empregados sem necessidade de um currículo oficial. Cada um sabe o perfil profissional de que precisa e que deseja ter em seu quadro de colaboradores.
A tecnologia hoje disponível nos permite um nível de desintermediação, e, portanto, de emancipação, enorme em relação a instituições que tentam nos tutelar, que tentam nos roubar a liberdade de aprender. É hora de nos libertarmos da tutela da escola e dos professores, como a população do século 16 se libertou da tutela dos padres e da igreja.
Por que tantos intermediários? Vamos desintermediar o acesso à educação e à aprendizagem! Vamos instituir a liberdade de e no aprender…
(E se, ao final, restarem algumas escolas, que elas sejam totalmente separadas, como as igrejas são hoje, pelo menos algumas, do estado).
Desintermediar não é algo simples como tirar dinheiro de um caixa eletrônico poderia sugerir. O processo mexe com uma gama enorme de interesses. Haja vista as guerras (chamadas de religiosas) que se desenrolaram na Europa nos dois séculos posteriores à Reforma. Mas é algo cuja hora chegou, também na educação.
Devemos ser gratos a Lutero que esse processo tenha se iniciado com ele no Século 16 e a fatores imponderáveis por ter chegado até nós.
Em outro artigo vou falar sobre Lutero e a Educação. A contribuição que ele deu à educação no Século 16 não é coerente com o que foi dito nos últimos parágrafos.
Em Salto, 26 de Maio de 2017.
[Este artigo foi originalmente publicado no Blog das Editoras Ática e Scipione, em 13 de Junho de 2011. O URL original era http://blog.aticaescipione.com.br/ (mas foi tirado do ar com a venda da Abril Educação pela Editora Abril). Subsequentemente foi republicado em meu blog Liberal Space, https://liberal.space, em 15 de Junho de 2011, no URL: http://liberal.space/2011/06/15/a-revolucao-da-desintermediacao/. Fiz pequenas revisões estilísticas nessa parte do texto para publica-la aqui.]