A “Ideia Perigosa” de Lutero

Martinho Lutero, diante do Imperador Carlos V, do Sacro Império Romano, quando instado, em 18/4/1521, a retratar-se das afirmações feitas, em 31/10/1517, nas 95 Teses que havia pregado na porta da Igreja da Universidade de Wittenberg, universidade em que ele era professor de teologia, afirmou:

A menos que seja convencido por testemunho das Escrituras e por argumentos claramente racionais, porque nem no Papa nem nos concílios eu acredito, já que está mais do que provado que eles frequentemente erram e se contradizem, eu, com base nos textos da Sagrada Escritura que indiquei, sou obrigado a me submeter à minha consciência e ficar fiel à Palavra de Deus. Por isto, não posso nem quero me retratar de nada, porque agir contra a própria consciência não é certo nem seguro. Nada mais nem diferente posso fazer. Aqui estou e aqui fico. Que Deus me ajude!”  [1]”

Acho esse pronunciamento de Lutero uma das falas mais corajosas e impactantes jamais feitas por um indivíduo na história da Humanidade. Lutero tinha, na ocasião, 37 anos. Era monge e professor universitário. Havia vindo de família relativamente humilde. Estava agora diante de ninguém menos do que Carlos V, que era Imperador do Santo Império Romano (que envolvia basicamente a Alemanha), rei da Espanha, rei das Duas Sicílias, rei de Jerusalém, rei da Hungria, rei da Dalmácia, rei da Croácia, arquiduque da Áustria, Duque da Burgúndia, etc. Johannes Eck, assistente do Arcebispo de Trier, tentou colocar Lutero contra a parede lhe dizendo, diante do Imperador:

“Martinho, como é que você pode presumir que é o único a entender corretamente o significado das Escrituras? Como você ousa colocar o seu julgamento acima do de tantos homens famosos e pretender que você sabe mais do que todos eles juntos? Você não tem direito de questionar nossa mui santa e ortodoxa fé, instituída por Cristo, o perfeito legislador, proclamada em todo mundo pelos apóstolos, selada com o sangue vermelho dos mártires, confirmada pelos concílios sagrados, definida pela Igreja em que os pais de todos nós acreditaram até sua morte e nos legaram como herança… Eu lhe pergunto, Martinho, e lhe peço que responda de forma simples, franca e sem chifres: você está disposto a repudiar, ou não, os seus livros e os erros que eles contêm?” [2]

Foi em resposta a esse desafio que Lutero disse o que vem citado no início.

A Igreja Medieval acreditava que as fontes de autoridade em questões de fé e de prática (moralidade) eram o Papa e os Concílios, em pronunciamentos atuais ou preservados pela Tradição da Igreja: aquilo que veio a ser chamado de Sagrado Magistério e Sagrada Tradição [3].

Lutero contrapôs a essas fontes de autoridade a Bíblia, a Sagrada Escritura — mas a Bíblia, e essa ressalva é importantíssima, interpretada segundo a consciência de cada um, iluminada por sua razão. A Bíblia, sim (“Sola Scriptura”), mas a Bíblia conforme a consciência de cada indivíduo a entende – consciência essa livre, que só se curva aos ditames da razão.

Lutero afirmou, textualmente, diante do Imperador, que era católico praticante, e Defensor da Fé Católica, não confiar nem no Papa nem nos Concílios apenas (isto é, sem a confirmação da Bíblia), porque, segundo ele, eles já erraram e se contradisseram.

O Papa Leão X já havia declarado Lutero herege e basicamente o excomungado. Não é de surpreender. Lutero era herege extremamente corajoso e ousado. Por pouco não foi queimado por sua coragem e ousadia.

Alister McGrath, em seu livro A Revolução Protestante [4], define o legado mais importante de Lutero como sendo esta sua “ideia perigosa” de que cada um tem a liberdade e o direito de interpretar a Escritura Sagrada por si próprio, segundo a sua consciência, iluminada pela luz da razão — sem depender de mediadores, sejam eles padres e pastores, teólogos, o próprio Papa, ou mesmo os Concílios que de vez em quando se reúnem para decidir algo.

O Protestantismo se desdobra em tantas denominações diferentes por causa dessa ideia poderosa — e perigosa. Mas melhor assim do que viver em uma instituição que se julga no direito de impor aos membros um voto de silêncio — ainda que considerado obsequioso.

(Para quem tem o livro, recomendo a leitura das pp.160-161 de Mark A. Noll, Momentos Decisivos na História do Cristianismo [5]). 

NOTAS

[1] A tradução do Alemão é minha. O texto no original em Alemão é: “Wenn ich nicht durch Zeugnisse der Schrift und klare Vernunftgründe überzeugt werde; denn weder dem Papst noch den Konzilien allein glaube ich, da es am Tage ist [feststeht], daß sie öfter geirrt und sich selbst widersprochen haben, so bin ich durch die Stellen der Heiligen Schrift, die ich angeführt habe, überwunden in meinem Gewissen und gefangen in dem Worte Gottes. Daher kann und will ich nichts widerrufen, weil wider das Gewissen [etwas] zu tun weder sicher noch heilsam ist. Hier stehe ich und kann nicht anders! Gott helfe mir, Amen!” Apud Heimo Schwilk, Luther – Der Zorn Gottes: Biografie (Blessing, München, 2017), p.237. Vide também http://www.luther.de/leben/worms.html. As palavras entre colchetes foram acrescentadas a partir da página mencionada na Internet. No primeiro caso elas esclarecem o sentido de uma expressão idiomática. No segundo, a palavra em colchetes parece faltar no texto do livro. No livro Martin Luther – Rebell einer Zeit des Umbruchs: Eine Biografie, de Heinz Schilling (C. H. Beck, München, 2012, 3.ed. 2017), p.226, há uma inversão na ordem das últimas frases (que alguns consideram ter sido acrescentadas ao discurso pelo editor do relato), inversão essa que eu optei por seguir na tradução: “Ich kann nicht anders. Hier stehe ich. Gott helfe mir. Amen.” O livro de Tillmann Bendikoswki, Der deutschen Glaubenskrieg: Martin Luther, der Papst und die Folgen (C. Bertelsmann, München, 2016), pp.35-36, concorda com Schilling.

[2] A fala de Eck foi traduzida por mim da versão em Inglês citada por Roland H. Bainton, Here I Stand: A Life of Martin Luther (New American Library / Mentor Book, New York, 1950, 1955), p.144.

[3] No artigo anterior discuti essa questão em mais detalhe. Vide os itens “B”, “C” e “D”, com o título, respectivamente, de “B. A Questão Histórica das Fontes da Pensamento Teológico Cristão”, “C. A Autoridade Exclusiva da Bíblia (Sola Scriptura)”, “D. A Interpretação das Escrituras”, no meu artigo anterior, “As Principais Teses de Lutero”.

[4] Alister E. McGrath, A Revolução Protestante (Editora Palavra, Brasília, 2012), tradução de Lena e Regina Aranha do original em Inglês Christianity’s Dangerous Idea (Harper, New York, 2007), Introdução, pp.10-13, e capítulo 2, “O Revolucionário por Acidente”, pp.43-64, em ambos os casos na tradução brasileira.

[5] Mark A. Noll, Momentos Decisivos na História do Cristianismo (Editora Cultura Cristã, São Paulo, 2000), tradução de Alderi Souza de Matos do original em Inglês Turning Points: Decisive Moments in the History of Christianity (Baker Books, Grand Rapids, 1997).

Em Salto, 26 de Maio de 2017
(Revisão de um artigo publicado em 28 de Julho de 2014 no meu blog https://historiadaigreja.space)

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